DEUS E CÉSAR (2): O companheiro de luta JV no Quinto dos Impérios assina uma bem sustentada e amável contradita ao nosso post sobre a introdução de referências religiosas no preâmbulo da Constituição Europeia. Comecemos por um mea culpa: os Estado são laicos, não necessariamente as sociedades (tem razão, sim senhor). Gostava também de deixar claro que não padeço nem um bocadinho de anticlericalismo.
A questão que levanto nem é quanto à presença no texto ou não da menção à matriz cristã da Europa (chego a afirmar que alguns argumentos a favor dela me parecem razoáveis). Isso é um pretexto para uma discussão mais vasta. O problema político substancial é se esta expressão corresponde ou não a uma tentativa política de inibir ou condicionar o alargamento da Europa a sociedades não cristãs. O que está aqui em causa fundamentalmente é o caso turco, se bem que a mesma discussão se poderá ter relativamente a alguns estados dos Balcãs.
A construção europeia tem sido um agente de estabilização e de democratização ímpar no continente europeu, como nós portugueses bem o sabemos. A adesão da Turquia seria, a esta luz, um enorme progresso para a paz na Europa e para o reforço do papel europeu no mundo islâmico. Claro que não pode ser feita a todo o custo: a Turquia tem de proceder às adaptações legislativas e do seu aparelho político e económico necessárias.
A posição que mencionei de Giscard d'Estaing é bem diferente desta. É, no fundo, um entendimento que defende que os países islâmicos não podem ter democracias liberais, nem têm de ser ajudados pela União Europeia na busca desse desiderato. Relembre-se que este argumento já chegou a ser usado contra o catolicismo: lembro-me (e não foi assim há tantos anos, nem eu sou assim tão velho) de ser quase voz corrente em Portugal que a democracia e a economia de mercado eram exclusivos dos países protestantes.
A União Europeia foi e é, na sua essência, um projecto de garantia da paz e de desenvolvimento económico e social e eu não vejo nenhuma razão para excluir deste processo a Turquia, um dos poucos estados islâmicos que consagrou a laicidade do Estado. A posição contrária envia este país para os braços do fundamentalismo islâmico, o que certamente não dará bom resultado. Turkey belongs to Europe era há uns meses a frase de capa do The Economist, uma revista conservadora de um país com referências à Fé e em Deus nos seus textos constitucionais (como bem nota JV). Esta tem de ser a posição de quem defende a disseminação do modelo de democracia liberal em que vivemos. Foi esta opção política que quis expressar, mais do que uma discussão em torno do clericalismo ou de religião. Espero agora ter sido mais claro.
P.S. - Expressões como "não pode ser outra a opção" ou "tem de ser a posição" são figuras de estilo, destinadas apenas a conceder força aos argumentos. Podem não ser muito elegantes mas daí a concluir que são pouco democráticas vai uma grande distância. Pergunto-me se o escrutínio tão detalhado da linguagem alheia não será uma involuntária e inconsciente adesão às teses mais extremas dos defensores de um uso politicamente correcto do Português.
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