AS DUAS AMÉRICAS: As discussões recentes entre anti-americanistas e americanófilos acerca dos mais variados temas, em que participei lateralmente por causa dos processos de Guantanamo, levaram-me a reflectir sobre o que move cada uma das partes. Interroguei-me por que razão os ditos processos me suscitam tanta repulsa, quando nada disse sobre o julgamento sumário e a execução dos balseros cubanos pelo regime de Fidel. É verdade que nessa altura ainda não me encontrava a bordo do Mar Salgado, mas, se tivesse sentido vontade, nada me teria impedido de pegar no assunto. Por que não o fiz? Terão razão aqueles que nos acusam (a mim e aos que criticam os processos de Guantanamo, ou vergonhas análogas) de enviesamento anti-americano, de um parti pris tão forte que nos leva a apontar o dedo acusador sempre que estão em causa os EUA - sendo todavia incapazes de fazer o mesmo quando fenómenos parecidos ocorrem em países que consabidamente não respeitam os direitos humanos?
Creio não ser culpado de sentimentos tão primários. O que se passa é que existem, de facto, duas Américas. A América de Lincoln, Luther King e Kennedy - e a América dos que não quiseram que eles morressem naturalmente. A América das sagradas liberdades constitucionais - e a América que sequestra Noriega, no seu país, para o julgar no estrangeiro. A América que se empenha em montar os Tribunais Internacionais de Nuremberga, para a Antiga Jugoslávia e para o Ruanda - e a América que se recusa a ratificar o Estatuto de Roma por "razões de Estado". A América de Whitman - e a América de Ezra Pound. A América de Noam Chomsky - e a América de Wolfowitz. A América de Henry Miller - e a América de McCarthy. A América de Jesse Owens e Carl Lewis - e a América do Ku Klux Klan. A América de Woody Allen - e a América de Archie Bunker. Em certo sentido, a Guerra da Secessão nunca terminou.
Julgo que é aqui que está o ponto. Nem a China, nem a ex-URSS, nem Cuba, alguma vez se arvoraram em defensores das liberdades individuais - que encaram como valores relativos, ordenados a interesses superiores (do Estado, do Povo, da Revolução, etc.). Por isso mesmo, os lamentáveis atropelos que praticam condizem com a roupa que vestem para sair à rua - mas não causam surpresa. Diversamente, a política norte-americana pratica com descaramento crescente um double talk insuportável para quem leva a sério as liberdades individuais. E daí a crítica, o dedo acusador. E daí o nojo que sinto quando vejo pôr sob a capa do que a América tem de mais nobre políticas próprias do autoritarismo mais reles e repugnante. Como se a América fosse só uma: como se por cada Woody Allen tivesse de haver, por inerência, um Archie Bunker. It ain't necessarily so.
PS: Felizmente, por cada G. Bush, cuja única certeza é a de que os presos de Guantanamo são "bad people", há uma associação profissional de advogados que denuncia a farsa dos processos (obrigado, de novo, ao NS do Causidicus).
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