MÁRTIRES DA LIBERDADE: A morte das duas siamesas iranianas confronta-nos, de maneira ímpar, com os limites da condição humana. A intensidade da emoção, quando soube da notícia, levou-me a procurar perceber as razões do que sentia. Explico: o bombardeamento diuturno com a desgraça alheia levado a cabo pela comunicação social (e pela TV em particular) cria em nós uma carapaça por camadas, naturalmente destinada a uma dessensibilização defensiva. O mesmo sucede, suponho eu, com os profissionais obrigados a conviver diariamente com a miséria, a tristeza ou a doença dos seus concidadãos. Por isso, aquele tipo de notícias tende cada vez mais a resvalar na nossa indiferença, tanto quanto as discussões sobre o orçamento de Estado ou os sucessos da Volta à França. Tudo fica nivelado no "espectáculo do real".
Daí a minha perplexidade com o súbito nó na garganta que a morte das duas irmãs me provocou. É que estamos, na verdade, perante um evento humano extraordinário. Conhecem-se casos de pessoas que se sujeitam a uma intervenção perigosa para evitar a morte ou para curar uma doença grave, bem como casos de pessoas que arriscam a vida por outras, ou por uma causa. Mas aqui a questão tem uma natureza inteiramente diversa. Desde logo, por se tratar de uma decisão conjunta, tomada por duas pessoas que têm o mesmo exacto problema uma da outra. Depois, porque eram duas pessoas cuja saúde não se encontrava imediatamente em perigo. Em terceiro lugar, porque aquela associação física durava há quase 30 anos. 30 anos de contínua ligação física a outrem. A maior parte dos vínculos sociais (casamento, amizade, sociedade de interesses, por vezes filiação) não dura tanto tempo. E, portanto, a decisão foi romper, com o risco da própria vida, uma associação física que as ligava desde o nascimento, 30 anos atrás - até à sua morte.
Não é fácil imaginar o processo que culminou nessa decisão. Nem como seriam as coisas se apenas uma das irmãs estivesse disposta a assumir aquele risco. Nem são líquidos os contornos jurídicos, morais, éticos e deontológicos de toda a situação. Mas não é isso que me interessa aqui. O que me impele a escrever este post é um sentimento de profundo respeito. Porque se trata da mais radical decisão pela liberdade de que tenho conhecimento. Radical porque extrema, porque limite, mas também porque atinente ao próprio sentido da condição humana. Uma genuína decisão de si, ainda para lá do conceito sartriano de liberdade. Uma reivindicação da restituição do ser-autónomo (ou melhor, como bem me corrigiu a Micha, de ser tout court) suposto pelo estatuto de pessoa.
Decisão radical, pois, que, ironia das coisas, teve que ser tomada - a duas. Porque o meu ser começa e acaba no teu ser. Porque o meu ser depende de eu não depender de ti e o teu ser depende de não dependeres de mim.
Curvo-me respeitosamente perante a decisão das duas siamesas, onde se resume, para lá do drama pessoal, o drama da nossa condição. É por isso que, para lá do mitleiden, os sinos dobram hoje por todos nós.
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