FAZER LEIS PENAIS PARA QUEM? (Post longo): Procuro manter-me afastado, no Mar Salgado, da discussão que agora se generaliza sobre a adequação / revisão do sistema penal e processual penal português. Porque acho que um blogue não é o espaço apropriado para o efeito e porque não me sinto habilitado, no plano técnico, a dar um contributo válido para a polémica. A primeira razão será mais ou menos óbvia para quem conhece verdadeiramente os problemas. A segunda razão resulta da minha convicção de que não devemos falar, ao abrigo de competências supostas, sobre assuntos que verdadeiramente não dominamos; podemos fazê-lo como cidadãos, mas não como putativos peritos. Creio que a sociedade portuguesa ganharia muitíssimo se este mandamento fosse observado - em todos os sectores.
Vem o discurso a propósito da meia-polémica levantada nas páginas da Visão com a entrevista ao Prof. Jorge de Figueiredo Dias e a subsequente Carta Aberta subscrita pelo dr. José Miguel Júdice (JMJ). Escuso-me à discussão substancial dos assuntos, pelas razões que acabei de enunciar. Mas há um ponto, levantado pelo bastonário da Ordem dos Advogados, sobre que gostaria de discorrer em abstracto: admitindo que as nossas leis são demasiado boas para os humanos que as aplicam, "não seria melhor reflectir sobre a vantagem de leis um pouco piores e que evitassem assim o enorme risco sistémico de uma normatividade que não se respeita?" Julgo que o contexto da pergunta de JMJ permite compreender o alcance das suas preocupações (a inferência é minha): a proibição da violação do segredo de justiça não funciona (o MP não consegue investigá-la com êxito) e, portanto, dado que a norma não "vige" (como diria um conhecido docente de direito), mais vale eliminá-la.
Sucede que o discurso de JMJ instila, de forma inconsciente, duas ideias: uma é falsa, outra é perigosa.
A primeira, falsa, é a de que as leis são obra dos "académicos" - necessariamente distantes da realidade (cliché que JMJ acriticamente reproduz, cabendo perguntar quantas vezes se deslocou ele, um auto-intitulado "prático", a um tribunal ou a uma prisão nas últimas décadas). Ora, os "académicos" são apenas técnicos a quem se encomendam pareceres e projectos: a aprovação das leis cabe somente à Assembleia da República, democraticamente eleita por todos nós. Facto que é totalmente esquecido (ou dissimulado) por alguns (blogues incluídos) que se pronunciam omnisciente e inflamadamente sobre o assunto.
A segunda, perigosa, é a de que não se deve legislar num plano ideal, mas sim tendo em atenção a "nossa realidade". Aqui, há que fazer algumas distinções. É claro que o legislador deve atender à realidade a que se dirige. Uma lei que conferisse aos condenados em pena de prisão o direito de, v. g., exigir ao sistema prisional uma colocação profissional do seu agrado seria, provavelmente, uma má lei. Mas isso não significa que as leis devam ser feitas, em abstracto, de acordo com a possibilidade de perversão a que estão sujeitas na prática. Aplicando o raciocínio de JMJ a outros pontos do sistema, de forma exemplificativa, deveríamos cortar muito cerce as possibilidades de recurso por parte da defesa, dado o uso indevido e puramente dilatório que dele fazem certos advogados, assim prejudicando a celeridade da justiça; ou dar valor probatório às declarações prestadas pelo arguido perante a Polícia Judiciária, o Ministério Público ou o Juiz de Instrução. Suspeito que estas inovações, abdicando dos princípios em atenção à "realidade que temos" e com ganhos óbvios de "coerência" e "eficácia", não seriam (felizmente) do agrado de JMJ.
Acresce que, na face oculta do problema, existe todo um universo a que convém dar luz: sem negar, de plano, a existência de eventuais perversões do sistema jurídico-judiciário que, como tais, devam ser corrigidas (nomeadamente no que toca o regime da prisão preventiva), não podem esquecer-se os milhares de decisões e actuações correctas dos respectivos actores - que, só por serem presumivelmente adequadas, não fazem as manchetes dos jornais: ninguém noticia o respeito pelo segredo de justiça havido em determinado processo, nem a prisão preventiva (adequada ou inadequada) aplicada a um presumível incendiário.
Em suma, diria que me parece muito perigoso clamar pela feitura de "leis um pouco piores" em atenção à menor qualidade ou rigor dos seus intérpretes - sobretudo quando tal apelo vem, embora de forma honesta e inteligente, do bastonário da Ordem dos Advogados.
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