OLHAR EM FRENTE: O excelente editorial de hoje de José Manuel Fernandes, apesar de pessimista, é uma excepção em Portugal (incluindo a blogosfera). Quase ninguém interpretou o discurso de Kofi Annan em toda a sua dimensão. Optou-se por relevar a sua defesa do multilateralismo, sendo estauma atitude natural vinda do Secretário Geral da ONU. Mas a grande novidade foi o repto lançado para uma reflexão sobre a compatibilização entre as teorias de acção pre-emptiva (tenho dúvidas sobre esta expressão, prefiro acção preventiva) e um processo de decisão partilhada pelo maior número de estados possíveis.
A crise iraquiana feriu de morte o actual Conselho de Segurança. Sou da opinião que este resultado foi involuntário. Resultou de um erro de cálculo da Administração Bush de que conseguiria obter uma segunda resolução, autorizando o uso da força. Ora bem, como os factos provaram, esta segunda resiolução era totalmente inútil: as resoluções que, por mais de uma década, obrigavam Saddam a ser mais transparente relativamente aos seus planos de armamento já legitimavam por si uma intervenção internacional. Uma nova resolução em nada alterava este estado das coisas, como aliás os factos vieram comprovar: verificou-se uma intervenção sem resolução. O único resultado foi uma divisão perigosa no bloco ocidental.
Mas as palavras de Annan foram muito avisadas. Convém reflectir no funcionamento da ONU, num mundo em que as inervenções preventivas serão cada vez mais necessárias para conter estados párias, para terminar genocídios (já ninguém se lembra que a NATO bombardeou a Sérvia sem mandato da ONU) e para evitar a proliferação de armas de destruição massiva.
A ONU não é perfeita (uma organização que tem a Líbia a chefiar a Comissão dos Direitos Humanos cobre-se a si de ridículo). Mas é o único fórum onde todos os países do mundo têm voz. E isto é um acquis civilizacional que não devemos deitar fora. Acresce que a ONU tem uma experiência em processos de nation buiding que tem de ser aproveitada (com aparente sucesso por exemplo em Timor-Leste), bem como organismos de ajuda humanitária que funcionam razoavelmente.
Manter a discussão no multilateralismo e unilateralismo (como fez o inefável Villepin) é prolongar a discussão pré-Guerra do Iraque. Olhar em frente pressupõe participar construtivamente na reconstrução do Iraque e unir esforços contra os inimigos comuns, dos quais o maior é o terrorismo (era bom que não fosse preciso a explosão de um autocarro em Paris ou Berlim para os alemães e franceses perceberem o que está em causa). Nesta medida, a tentativa de Annan de lançar a discussão sobre o enquadramento jurídico e institucional do mundo que temos (e não o que deveríamos ter) é um acto de visão e ousadia políticas louváveis.
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