SUPREMUM VALE: É claro que nos seus efeitos práticos, a forma como nos morre alguém não tem qualquer importância. Perdendo alguém, ou de outra forma, ganhando a ausência de alguém, pouco nos importará se ela nos morreu com cancro ou num acidente de automóvel. Mas certas profissões desenvolvem olhares oblìquos, e contestam as evidências. Ao fim de todos estes anos, julgo que um doente meu que assistiu à morte de quem lhe fazia falta não a vive da mesma forma do que outro que perca inopinadamente, um filho, uma mulher, um pai.
Digamos que estes últimos chegam virgens à perda, e que a sua brutalidade os entontece. Recordo-me de uma doente minha, com quem estive hoje mesmo, que há cinco anos perdeu, num segundo, no IP5, a filha, o genro e o neto. Iam para um casamento e tinham-na visitada nessa mesma manhã fresca e ordinária. A senhora deslizou para anos de recolha e memória com caixa automática.
Muitos outros, que acompanharam os mortos-vivos nas idas aos serviços de oncologia, impressionam-me sempre. Desenvolvem uma resistência que nunca suspeitaram possuir, tratam a morte por tu. As obrigações diárias arrastam-nos numa falsa aceitação, já não se trata de caixa automática, mas de piloto automático. Ainda hoje penso numa mulher Fernanda P., que acompanhei no seu último ano de vida. Tinha 41 anos e duas filhas pequenas. Da última vez que a vi estava perfeitamente consciente do que a esperava. Numa tensão para mim brutal, porque me apetecia estar em todo o lado menos ali, perguntei-lhe como vivia, o que é que ainda lhe dava prazer fazer: respondeu-me que como já não trabalhava, gostava imenso de esperar em casa a filha mais nova e lanchar com ela. Esta mulher condensava o pior de dois mundos: era ela que ia morrendo, mas era ela que fazia o teatro, o lanche, as despedidas. Era ela que assistia à morte de quem lhe fazia falta.
Mesmo sendo um terapeuta tarimbado por ambos os tipos de morte, o meu pai morreu de cancro, era eu ainda novo, um filho morreu-me de repente, já tinha eu passado dos trinta, a Fernanda e outros sentam-me muito quietinho, a um canto branco e limpo.
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