HISTÓRIAS DE FAMÍLIAS DESAVINDAS: Tudo começou quando o sogro, o velho Pereira Rocha (PR), de nome próprio João Simão (JS), resolveu falar em público sobre o assunto. O velho PR raramente falava mas, mesmo quando falava, o seu discurso era de tal forma ininteligível que as frases e o seu sentido eram sempre explicadas e sussurradas aos outros por um velho amigo, extremamente discreto, o Fontes , que se encarregava de se certificar de que as pessoas compreendiam o alcance e o verdadeiro sentido das palavras do PR.
Pois o PR, que nos últimos meses tudo tinha já aturado da filha, Paula Sofia (PS), resolveu vir a público explicar à sociedade, no seu jeito meio enrolado, aquilo que o movia e as ideias que defendia. O assunto principal prendia-se com umas cartas apanhadas à pobre PS e divulgadas por uma criada, cartas essas bastante comprometedoras, onde ela utilizava uma linguagem pouco própria de uma rapariga de boas famílias. Toda a sociedade da época falava no assunto, primeiro por sussurros e depois completamente à solta, dado que de boca em boca a notícia tinha circulado abundantemente e até o velho Manuel Risonho, o motorista, dantes sempre tão bem disposto e palavroso, sempre tão sensato, desta vez olhava de soslaio e, metendo os pés pelas mãos, só dizia disparates que atrapalhavam o resto da criadagem e incomodava quer PR quer PS.
E o PR falou. Falou tão claramente e de forma tão explícita que daquela vez nem foi necessário recorrer ao amigo Fontes para explicar o que dizia. Só que esqueceu a filha. De PS disse apenas que a conhecia há 30 anos e que não a iria proteger. Por nada. E que, de todo o modo, isso era um assunto menor: com o que a sociedade se deveria preocupar era com o comportamento inacreditável do genro, Paulo Serôdio Dias (PSD). Com a falta de educação dele, com as falhas na educação do PSD, com o que os estrangeiros diziam das terras e gentes geridas pelo PSD, com as doenças de PSD e com a sua falta de cuidado nos tratamentos médicos. Por fim, com a forretice do PSD, que só pretendia aforrar, só aforrar, só aforrar, nada gastar. Só faltou falar na ligação recente do genro à Cristina Duarte Santos (CDS), a quem secretamente PR e PS imputavam todos os males.
O romance do PSD e CDS era, diga-se em abono da verdade, real. Ambos se tinham juntado, embora de início com algumas dúvidas, e criado uma amizade e cumplicidade de argumentos e intenções como nunca antes qualquer um deles tinha realizado. E começavam familiarmente vida nova sobre os destroços da anterior. Só que os escombros eram enormes.
Convém explicar: durante a sua relação, PS e PSD geriam as receitas familiares com total independência, ora um, ora outro, à vez. E tendo PSD passado esta incumbência a PS, de imediato se começou a gastar à doida. E foram festas para os amigalhaços, dádivas, gastos sumptuários, carros de luxo, casacos de pele, tudo era permitido. O limite dos cartões de crédito familiares era permanentemente esgotado e pago apenas pelo mínimo. O pobre pecúlio amealhado anteriormente por PSD era desbaratado sem cerimónia. Enfim, a massa era torrada à tripa-forra, o pilim desaparecia, as verdinhas escorriam-se, a massaroca ia-se. PSD, às vezes, desconfiado, perguntava:
- Mas, ó PS, filha, teremos dinheiro para isto tudo?
Ao que PS respondia, indignada:
- Não te metas! Eu é que sei! Cala-te! É a minha vez de mandar no dinheiro.
E PSD recolhia-se, tristemente e bastante preocupado (alguns dizem que começou aqui a sua relação com CDS).
Até que um dia, não me lembro qual (era dia de eleições, parece-me), PS foi maltratada na rua, no banco, escorraçada das lojas, apupada como caloteira, e, completamente desacreditada, enlameada, enxovalhada, vem para casa, chorosa, lamentando tudo, entregando tudo, desistindo de tudo, fugindo de tudo. Numa palavra, escapuliu-se.
E aí, no meio de toda a tristeza, foi PSD quem tratou de colar os cacos. Com ajuda fraternal de CDS. Foram ambos aos bancos, analisar as despesas, os descobertos, os calotes. Depois ao sapateiro, ao merceeiro, à farmácia, avaliar todas as despesas, fazer acordos, negociar pagamentos. Às criadas retiveram os aumentos; aos fornecedores os juros; aos bancos, os próprios pagamentos; ao American Express expressaram as desculpas (de lá expressaram as condolências). Todos se queixavam de PSD e de CDS e a estes não bastava dizer que a culpa era do despesismo de PS.
Cortaram em tudo. Acabaram-se as festas, os teatros, os cinemas, as obras. Fechou-se a porta à decoradora da moda; expulsou-se o empreiteiro armado em estilista. Ficou apenas o essencial; comiam-se febras com esparguete ou arroz branco, remendavam-se meias, suplicava-se paciência às criadas.
Mas PS exigia alimentos, sempre e cada vez mais; importava-se pouco com as dificuldades e exigia de PSD, principalmente por causa de CDS, sempre e mais despesa. Endividamento. Para eles e para os amigos.
E é claro que PSD e CDS tudo dariam, se pudessem. Mas não podiam: não havia.
Em vão PSD e CDS diziam a PS que estavam a equilibrar as finanças, em vão lhe diziam que estavam a pagar as dívidas anteriores, em vão lhe diziam que não tinham dinheiro, em vão lhe asseguravam que esta atitude protegeria os filhos, o futuro; em vão: PS tudo exigia.
Tanto que PSD e CDS suplicaram a PR alguma ajuda, apoio: mas logo o velho sogro veio dizer que esta poupança podia não ter sentido, que os sacrifícios só valeriam a pena se houvesse verdadeira consolidação orçamental. Abriu assim caminho à dúvida, ao medo. Este instalou-se nas criadas, no merceeiro, no farmacêutico, na banca, arruinando tudo. E foi esta a grande contribuição do sogro. Que lhe dê bom sono.
Mar de opinioes, ideias e comentarios. Para marinheiros e estivadores, sereias e outras musas, tubaroes e demais peixe graudo, carapaus de corrida e todos os errantes navegantes.