RETÓRICA & ARTIFÍCIOS: O Américo de Sousa não só teve a gentileza, que desde já agradeço, de responder à pergunta que lhe tinha posto aqui, como também, a pretexto dela, aproveitou para nos presentear com uma excelente lição de retórica. Nada melhor que um especialista para discorrer sobre a (in)adequação de certos procedimentos na discussão pública de ideias.
A lição só não foi ainda mais incisiva por minha culpa: na ânsia de sintetizar o problema concreto que me preocupava, não pude deixar claros todos os pressupostos de que partia e AS não podia, evidentemente, adivinhá-los.
Não pude, por exemplo, esclarecer que o termo "artifício" não tinha, apesar do contexto em que o empreguei, uma conotação pejorativa, antes pretendia significar, como AS bem lembra, "engenho" ou dispositivo - que todavia, e com a devida vénia, eu não assimilaria aos que se empregam nos "usos de linguagem" comuns, dado que a retórica é um uso de linguagem qualificado, com uma vinculação final específica (a persuasão). Dito de outra forma, em minha opinião, um artifício ou dispositivo retórico não o é apenas na estrita medida em que toda a linguagem é artifício ou dispositivo, nem sequer na medida em que o são as figuras de estilo, porque comporta um elemento dinâmico (dado pelo fim persuasivo) que exorbita da linguagem enquanto mero aparelho de comunicação.
Também não deixei suficientemente claro que a pergunta pressupunha um contexto de comunicação aberta (um debate público), nem que o emissor desconhecia, no momento da declaração, a identidade concreta de eventuais opositores - o que afasta, suponho eu, a possibilidade de vermos aí um argumento ad hominem.
Enfim, esclarecidos alguns dos pressupostos implícitos de que partia a minha questão, e só pelo prazer de continuar esta agradável conversa, a leitura do texto de AS permitiu-me consciencializar que o cerne do problema ainda me resiste. É que não se trata apenas de "insultar antes de ser insultado". Trata-se de prevenir um ataque muito concreto: eu, declarante, sei que grande parte dos membros do auditório relevante consideram a minha ideia como própria de um troglodita, e por isso qualifico eventuais discordantes como trogloditas (e não como estúpidos, ignorantes, desonestos, ou outra coisa qualquer).
O que me pode levar a fazê-lo? Creio que o objectivo só pode ser o de desvalorizar, perante os membros do auditório, não só a adjectivação de que, pessoalmente, posso vir a ser alvo, como também a linha de argumentação - no caso, essencial - que procure mostrar que a minha ideia não é compatível com o estado actual da civilização. Se essa linha vier a ser adoptada, a discussão descentrar-se-á, passando do aspecto substancial da questão para o aspecto lateral de "quem é o troglodita". Neste sentido, a qualificação que fiz previamente dos eventuais opositores (e que dificilmente pode ser vista como um insulto, pois não visava uma pessoa concreta), ainda é um artifício retórico, pois condiciona fortemente as possibilidades da argumentação. Coisa diversa é saber se ele ofende as regras deontológicas da arte. Será assim, Américo?
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