SEMPRE: Amanhã vou aos HUC despedir-me de uma doente-amiga, tem o fígado repleto de metástases, está amarela, restam-lhes poucos dias. Nos últimos dois anos temos falado regularmente dos dias do fim, mas também dos silêncios do marido, dos seus filhos, do entorpecimento. Nestas consultas não há reestruturação de personalidade, nem anamneses didácticas. Há o tempo. Só.
Esta morte lenta e certa, é em parte, um produto do avanço civilizacional: diagnóstico preciso, informação, terapêutica retardadora. Sabe-se o que se tem, sabe-se que se vai morrer, e espera-se, atrasa-se a lança de Ajax. O que me interessa é saber se esta dilação traz alguma coisa de verdadeiramente importante para o moribundo. Claro que para aqueles que se salvam, a questão nem se coloca, o problema são os outros.
A monitorização do andamento da morte-locomotiva, não atrasa o doente na lida das coisas pequenas. Velhas rixas, dinheiros, cíumes, tudo continua a rolar, tudo segue o seu carril. Ouço falar em apego à vida, mas tenho dúvidas: a vida verdadeira já se separou de nós nesta altura.
Esta minha doente-amiga, há muito que só se preocupa com ela e com o seu cancro. Dança um pas-de-deux voluptuoso e repetitivo, prenhe de lamúrias, que não abraça nem apego nem vida. Esta gente que nos morre, e para as quais só temos palavras mas não temos salvação, não nos revela nada. Só nos cega. E ainda bem.
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