O HOMEM E A ESTRADA: Aqui há tempos escrevi sobre os quase mil acidentes mortais causados por condutores alcoolizados nos ultimos dois anos em Portugal. Nesse texto, erradamente, atribui a Manuel João Ramos, presidente da ACA-M, simpatia pelo BE, o que não é verdade. O MJR era chamado à colacção como um exemplo de que o discurso securitário pode por vezes habitar quadrantes ideológicos aparentemente inospitaleiros. O MJR, amavelmente, trocou correspondência comigo, sublinhando uma ideia curiosa: o securitarismo não se resume a um dispositivo ideológico e por isso não tem de ser concebido como um modelo social. A dois tempos, iremos discutir isto.
Em 1993, a Universidade do Minho publicou as actas de um Seminário internacional dedicado aos Factores Humanos no Tráfego Rodoviário. Psicólogos, polícias, instrutores, juristas, discorreram sobre o assunto. O tom geral das conferências é indisfarçável: prevenção, informação, formação ético-cívica (?), e sobretudo repressão apenas a indispensável. Germano Marques da Silva não poderia ser mais claro ( o sublinhado é meu):
(...)impõe-se que a actuação policial seja o que deve ser essencialmente, isto é, preventiva, de molde a evitar a transgressão, mais do que a puni-la, e que as sanções pela violação das normas de condução atinjam o automobilista onde mais lhe dói, na licença para conduzir. GMS entende que o respeito por normas a que em geral não se reconhece conteúdo ético passa primeiro pela sua compreensão, no acto de conduzir.
Ora, parece-me que se desenha uma filosofia claramente inspirada num familiar optimismo antropólogico: se o homem perceber a norma justa, cumpre-a. De facto, se o meu filho de 10 anos perceber que meter o gato no congelador, provoca dor e sofrimento desnecessário ao animal, tenho mais hipótese de poupar o gato a chatices futuras. Mas se não perceber, por qualquer motivo, ou se perceber, mas o prazer que tem em congelar o gato falar mais alto, não me resta alternativa a não ser puni-lo. Dito de outro modo, a vinculação moral (é com Kant que a ética que passa a designar uma moral particular, por ex, a deontologia profissional) pode ter que passar num primeiro momento, não pela compreensão, mas pelo respeito à norma que vincula a própria disposição moral.
Enquanto o condutor não compreende que não deve conduzir alcoolizado, ou lhe apetecer fazê-lo, apenas a repressão garante que todos os outros que já perceberam, ou temem não perceber, possam circular em segurança. O comportamento éticamente decente sobrevive tanto da reunião moral do agente aos seus princípos, como da sua existência concreta, protegida também pelo lado repressivo: assim o assassínio deve ser moralmente condenado, tanto quanto reprimido pela lei . É que ao contrário dos gatos, não temos sete vidas.
(continua...)
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