ANTI-SEMITISMO II: Pelo que leio, a pergunta ( que raio tem o anti-semitismo a ver com a esquerda europeia?) era mero artíficio retórico: o Terra do Nunca (links na coluna da direita) acha-me ( e a outros) pateta e doentio só por me debruçar sobre o tema. Mas enfim, o prometido é devido, e pode ser que outros achem interessante o que se segue.
De facto, desde que o conceito aparece, transparece sobretudo na retórica reaccionária anti-moderna, de Nietzsche a Sorel, de Schmitt a Sombart. O adversário é a democracia burguesa liberal, tanto na sua cedência aos "interesses pluralistas ( socio-económicos) da sociedade civil" como na sua capacidade de "aniquilar as raízes profundas do Volk", como escrevia Freyer, na Revolutions von Rechts.
O judeu, emblema do calculismo apátrida e da submissão dos costumes locais à racionalidade económica, contribuia decisivamente para a desgraça da nação. Em França, o célebre amigo de Freud, o Dr. Charcot, dizia em 1887, numa conferência na Salpêtriére, que era indispensável estudar os judeus se se pretende compreender que a neurose é a doença de uma raça semita original. Drumont (autor da France juive) celebrizou-se por outras tiradas, como esta: "a França é uma nação-mulher, acessível e penetrável", pelo judeu "que propaga a peste mas não a contrai."
Bukharine e Preobarensky ( ABC do Comunismo, 2ºvol.) piavam mais fino: só a burguesia judaica aliada com a de outros povos pilha o mundo operário. E por aqui vamos ao osso: à esquerda, históricamente, a judeofobia não assume um verdadeiro carácter racializante, extirpada que é dos modelos reducionistas do cientismo das Luzes, acerca de raças superiores e raças inferiores. Mas a lenda do judeu como um aliado do capital internacional, assume hoje um significado diferente. Grande parte da retórica anti-globalização herdou vícios antigos. Se por um lado a alta finança internacional não terá sido culpada das grandes fomes etíopes de 1540 e 1742, o subdesenvolvimento africano e asiático é-lhe regularmente imputado. Os bravos acreditam que as relações de exploração se resumem a um problema de distribuição de recursos, não se lembrando nunca de responsabilizar os governantes do mundo pobre pela miséria que impõem (como Mugabe, que para ganhar dois anos de sossego pretextou dar a terra dos brancos aos camponeses negros e destruiu a economia do país para embaraço dos europeus e americanos que ainda usam a camiseta do Che), antes transferindo essa responsabilidade para o Ocidente.
Uma velha herança jacobina europeia, assente na necessidade de reconfigurar o mundo através de uma acção política totalizante, encontra hoje na esquerda kitsch a retórica do pobre/oprimido contra o capital internacional. No médio-oriente, o velho sonho da ummah islâmica, sobretudo sunita, tem reactivado o ideal de fusão entre comunidade política e comunidade religiosa. O padrão sectário e semi-revolucionário neo-fundamentalista, cai bem aos orfãos do muro, na Europa; tem uma componente moderna que o torna atractivo, como no caso da revolução iraniana, que quando triunfou, não aboliu a mais recente das instituições, o parlamento, sem qualquer tradição no Islão.
See quando lá chegarmos, à total identificação do Ocidente capitalista, burguês e liberal, com o mal, o judeu na Europa, estará a jeito. Como sempre esteve.
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