DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO (Post longo: hoje é a minha vez!): Há uns tempos atrás, re-eclodiu na blogosfera (por obra, se a memória não me trai, do Paulo Gorjão) a discussão acerca do aborto, a propósito de um artigo de Vasco Rato no Independente. Aqui no Mar Salgado, o VLX, o FNV e o nosso Master and Commander já escreveram as suas opiniões. O assunto é, para mim, bastante traumático, por uma razão simples: quando decorreu o referendo sobre a descriminalização parcial do aborto, não fui capaz de formar, em consciência, uma opinião suficientemente firme, a despeito das muitas discussões e do "trabalho de casa" que me esforcei por fazer. Como tal, não fui votar, porque não me senti capaz de contribuir validamente para a "vontade geral". E quando não se sabe responder à pergunta que nos põem, é melhor não responder à sorte, ou por impulso infundado.
É sempre muito fácil criticar as opiniões dos outros, sobretudo quando não se tem opinião. É tão fácil (e tão verdadeiro) dizer ao Paulo Gorjão que o problema do aborto não é um problema de direita / esquerda, como dizer ao NMP que, de facto, existe uma tendência sociológica das opiniões de acordo com essa divisão (o VLX perdoar-me-á que, por razões de espaço, não comente o epíteto de "esquerda bafienta" dado a quem defende mais permissividade na descriminalização do aborto, só compreensível da parte de quem considera o Independente como "direita arejada"). As proposições precedentes não são contraditórias - tudo depende do plano em que nos colocamos: o PG sobrevaloriza a instância ideológica (enquanto produtora de critérios de acção política) e o NMP minimiza as representações da estrutura social que está na base dos alinhamentos políticos. Por outras palavras: se o problema social do aborto não se resolve recorrendo às categorias direita / esquerda, nem por isso deixa de ser verdade que a "direita sociológica" se mostra mais renitente a uma política permissiva da interrupção da gravidez.
Interessa-me apenas aqui - e já é muito! - o problema de saber se a lei penal portuguesa deveria ampliar o elenco das causas que permitem interromper legitimamente uma gravidez. Para isso, é importante listar algumas das minhas premissas:
1) a vida intra-uterina não é um nada; é, nas palavras do saudoso Orlando de Carvalho, uma spes vitae, que, justamente enquanto esperança ou potência de vida, merece consideração comunitária e, por isso, protecção jurídica;
2) a vida intra-uterina, sendo potência de vida, não é igual, em plano nenhum (salvo, talvez, no discurso religioso), à vida humana;
3) a conjugação das duas frases precedentes permite compreender que a lei penal portuguesa proíba, em princípio, a IVG, salvo se ocorrerem situações excepcionais onde possam prevalecer outros interesses (que não relevam para justificar um crime de homicídio) - e, neste ponto, a lei penal portuguesa actual parece-me justa e equilibrada;
4) a justificação penal da IVG não é uma imposição, mas apenas uma permissão, pelo que o problema não é, neste plano, e ao contrário do que por aí se escreve abundantemente, moral (o poder de decisão do problema moral permanece com o sujeito), mas exclusivamente jurídico;
5) a "liberdade de maternidade / paternidade" (onde se inclui a "indicação social") não é, do meu ponto de vista, um interesse assimilável àqueles que a lei actual prevê (indicações terapêutica, embriopática e criminal), pelo que não deve servir de justificação ao aborto.
E todavia. Se as coisas fossem assim tão simples, eu poderia ter votado, de consciência limpa, no referendo sobre o aborto, dizendo "não". Mas não são.
Acontece que a criminalização de um comportamento não pode ignorar a realidade social a que se destina. E a verdade é que, segundo uma experiência consolidada ao longo de séculos, a proibição penal do aborto não é respeitada pelos cidadãos, nem pelas instâncias de controlo encarregadas de aplicar a lei. Admito que algumas pessoas deixem de abortar com medo de serem perseguidas; mas interessam-me mais as dezenas de milhar que não deixam de o fazer apesar da proibição, bem como a passividade dos órgãos de investigação criminal (ni vu, ni connu): como dizia o NMP, pouca gente, autoridades incluídas, quererá ver na prisão uma mulher que abortou.
Estes dois factores podem ser suficientes para determinar a ilegitimidade da perseguição penal. O problema aqui já não é, repito, de ponderação de interesses, mas, estritamente, de vigência social das normas. Que, ainda por cima, acarreta consequências gravíssimas de saúde pública (sim, saúde pública).
De modo que este é apenas o testemunho de alguém atormentado com a sua incapacidade de, em último termo, exercer os seus direitos de cidadão, e a quem não é possível esquecer, nesse momento decisivo, o pouco que sabe de direito. A solução ideal seria, talvez, mantermos os nossos bons princípios e que, ao mesmo tempo, todas as mulheres tivessem a possibilidade de ir abortar a países mais permissivos do que o nosso. Salvávamos a nossa boa consciência. Enquanto isso não acontece, só nos resta - ao menos a mim, que não tenho nomes para todas as coisas - um caminho: continuar a ouvir e a reflectir.
(act. em 3-12: Reparo agora que o Caso Arrumado tinha escrito, antes de mim, um post com um sentido muito semelhante; fica, atrasado, o link).
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