A ÚLTIMA HORA: O filme de Spike Lee, no original, The 25th Hour, condensa em veludo e aço, a nossa relação ocidental e sobre-moderna com o tempo; é apropriado para a ocasião.
Independentemente de ser um filme fabuloso, consegue (tal como Smoke, em que Harvey Keitel perde a mulher num atropelamento e reencontra-a nas fotografias de William Hurt) chegar ao osso: como libertarmo-nos do presente?
Em Smoke é o passado que aparentemente acorrenta, na Última Hora é o futuro que Edward Norton, a viver o seu último dia de liberdade, compreende que lhe escapou. O osso é a defesa maníaca que desenvolvemos, segundo a qual o que temos é o que sempre teremos. Isto permite-nos desprezar coisas valiosíssimas, porque a vivência do presente, o seu dictact, arrasta-nos numa vertigem propulsora, por vezes quase demencial. O famigerado consumismo ocidental não é mais do que um pós-operatório secundário à resolução das necessidades básicas: resolvido o essencial, organizamos socialmente a felicidade, num suporte material e aquisitivo. Quando o essencial nos escapa, viramo-nos para o horizonte temporal. Não me esqueço de um heroínomano que tratei, que durante dez anos viveu para lá dos limites, mas que quando soube que a infecção por HIV que tinha contraído se metamorfoseara em SIDA, mudou: passou a viver limpo, saudável e a fazer planos para o futuro. Precisamente na altura em que, o mais natural, seria que baixasse a guarda e gozasse as últimas delícias de Cápua.
Séneca, que inventou a fotografia, sabia-o: só podemos estar seguros do nosso passado. Edward Norton apercebe-se que não poderia ter feito nada de diferente do que fez ( tráfico de drogas), ainda assim deseja, num esgar patético mas perfeitamente compreensível, que o futuro fosse outra coisa qualquer. Em Smoke, o personagem que perde a mulher defronta-se com o que todos nós nos defrontamos: quando perdemos alguém, perdemo-nos a nós, e por isso a memória é uma traição, o regresso uma tromperie.
Quando o horizonte temporal se fecha, ou porque sabemos o nosso destino, ou porque quem contavamos para o construir desaparece, o presente pasa a ser uma prisão insuportável: continua a ser um elo entre as outras duas categorias temporais, mas um elo de uma cadeia.
Bom ano novo.
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