DIREITO PENAL DO INIMIGO? (IV-IV): Exposta a polémica nos seus traços gerais, começarei por notar que ambos os Autores concordam num diagnóstico: o enquadramento legal contemporâneo do fenómeno terrorista é próprio de um estado de excepção constitucional. Daqui não decorre, necessariamente, a sua ilegitimidade, mas é imprescindível que tenhamos esse facto em mente para que as regras excepcionais não alastrem, indiscriminadamente, para campos onde tal estado de excepção se não verifica – e que já estão dominados pela terminologia do “inimigo”: “luta contra o branqueamento de capitais”, “guerra à pedofilia e à pornografia infantil”, “combate à corrupção”, etc.
Depois, terá ficado claro que subscrevo por inteiro a crítica de Cancio Melià, à qual gostaria de juntar, de todo o modo, uma nota, que se prende com a concepção de pessoa avançada por Jakobs (e cuja imputação à referida passagem de Kant seria mais do que duvidosa).
Ao sustentar que o inimigo não deve ser tratado como pessoa, Jakobs normativiza por completo aquele que é o arrimo último do Estado de direito: a pessoa deixa de ser substantiva, dotada de realidade própria por força do nascimento, para passar a ser um atributo eventual, algo de semelhante à persona romana e ao subjectum medieval - pessoa é, então, não a pessoa humana, mas aquilo que se predica de cada indivíduo na cidade. Ora, foi precisamente este discurso que legitimou a escravatura e o holocausto. E é, evidentemente, uma ruptura civilizacional intolerável.
Por outro lado, Jakobs parece esquecer que a dualidade “guerra / inimigo” de Kant não tem hoje o mesmo significado: a guerra e o tratamento do inimigo são disciplinadas por direito cogente, que, como tal, se impõe aos Estados, não ficando dependente de uma auto-limitação dos mesmos, e cuja violação pode até constituir um... crime de guerra. O que significa que, mesmo no sentido militar originário, o inimigo é presentemente, também, pessoa.
Sem prejuízo do elevado valor científico da obra de Jakobs, apetece perguntar: quantas gerações serão necessárias para que certas noções ganhem raízes suficientemente fundas na Alemanha? Quando, fria e racionalmente, negamos o estatuto de pessoa ao Outro, a qualquer Outro, somos nós, não ele, quem deve abandonar, por indignidade, a "comunidade legal".
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