ABDUL-KARIM SOROUSH: Entendo mais interessante encontrar interlocutores livres do que querer matar todos os terroristas ou negociar com alguns. Por tal, aguardo o dia em que o Parlamento Europeu atribua o Prémio Shakarov a Abdul-Karim Soroush. Segue-se uma pequena apresentação do personagem e os motivos da minha esperança.
Soroush nasceu no Irão em 1945, estudou ciência e religião, mistura sempre interessante, e em 1973 vai para Inglaterra investigar quimica analítica e história das ciências, contactando com a obra de Popper, Quine, entre outros. Em 1980, com a revolução ainda quente, Khomeini oferece-lhe um lugar de sage, mas Soroush depressa se desilude com o dogmatismo da escola de Qom: as ciências sociais são desvalorizadas, as mulheres impedidas de aceder à universidade, enfim, o cortejo esperado. Sobrevivendo no seu departamento de Filosofia da Ciência da Universidade de Teerão, torna-se figura de proa da ala ultra-liberal do regime, o que lhe vale assédio policial regular e mesmo a prisão, durante cinco meses, em 2002. Khatami, um velho amigo, deu-lhe ainda alguma esperança, mas o jogo de equilibrios internos da política iraniana depressa o fez assentar os pés no chão: Soroush exila-se, e vive hoje, literalmente, na Universidade de Princeton, onde ensina e escreve.
Mais radical na proposta de abertura do Islão do que Mojtahed Shabestari, o projecto de Soroush é uma tentativa carregadinha de heresia histórica (para os sunitas) de reconciliar o Islão actual com a modernidade. A heresia prende-se com o facto de Soroush perfilhar uma antiquíssima tradição intelectual islâmica, a escola dos Mu'tazilites. Os Mu'tazilites, sobretudo no período 827-848 foram o embrião de uma escola liberal da filosofia e ciências árabes, herdeiros dos textos gregos, que acreditavam que a justiça não derivava de Deus, antes orientava as acções de Deus. Esta escola manteve-se mais ou menos viva ao longo dos séculos, e é particularmente irritante para o Islão oficial: Uma acção não é boa ou má porque Deus o queira ou proiba, Deus decreta-a ou proibe-a precisamente porque ela é boa ou má. O velho dilema socrático do Êutifron - existem valores morais objectivamente bons - inspira esta concepção da moral independente de Deus. Soroush ensina hoje nos seus seminários, que apenas a razão pode permitir aos muçulmanos distinguir entre o Bem e o Mal.
A reconciliação do Islão com a modernidade é obviamente um projecto perigoso para o Islão radical, mas não na sua versão tecnológica da morte ou da indústria. Já há muito anos Eisenstadt explicava que os fundamentalismos têm uma relação selectiva com as esferas da modernidade. Soroush entende que o que os muçulmanos conservadores temem é uma secularização que repousa nos direitos individuais do homem: direito de aprender, de pensar, de trabalhar, de agir. Estes direitos conduziriam o muçulmano a uma nova compreensão da subjectividade humana, fundada nas noções de actores livres e racionais. A linguagem do direito, assim entendida, afronta a linguagem da Fiqh, a jurisprudência muçulmana, que repousa essencialmente na noção de dever.
Soroush (como outros moderados) tem muitos seguidores (*), mais ou menos clandestinos, no mundo islâmico. Premiá-lo, dar-lhe visibilidade, valeria por certo mais do que muitas declarações de guerra, e estaria mais de acordo com o espírito de Toledo.
*: Ver a www.etudesmusulmanes.com, ou a www.dsoroush.com/english/on ou ainda o excelente artigo de Mahmoud Sadri, Sacral defense of Secularism: The Political Theologies of Soroush, Shabestari, and Kadivar, in International Journal of Politics, Culture and Society, Vol. 15, No2, Winter 2001.
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