BICHAS PRÓ-LEITE: Leio e oiço com costumeira atenção os artigos e as intervenções de José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO, e identifico-me até com muitas das suas opiniões e ideias. Uma delas é a do editorial de hoje, naquele jornal, pelo menos na parte em que defende que é necessário fazer pedagogia e explicar aos mais novos as vantagens do país que temos hoje face ao anterior regime - o que, no fundo, podemos traduzir e resumir em mais liberdade, por um lado, e democracia plena, por outro. Percebendo os mais novos as dificuldades de se viver sem total liberdade e num regime não democrático, estou certo de que viverão melhor e mais civilizadamente a liberdade e a democracia de hoje pelo que concordo que as coisas sejam contadas aos jovens.
Acho é que elas devem ser explicadas com particular cuidado, para não se correrem riscos de se deturpar a mensagem e de se estragar uma boa ideia.
Na verdade, se vamos dizer às crianças que o actual regime é excelente porque no anterior “as barracas entravam pelas cidades dentro” e “as empresas só medravam com autorização do Estado”, corremos o risco dessas crianças, ao olharem para o estado actual das suas próprias cidades (com Lisboa e Porto à cabeça) ou para empresas como a PT ou a Galp, desvalorizarem seriamente as vantagens do regime em que vivemos ou de pensarem que estamos a gozar com elas.
Por outro lado, se lhes deixamos subentendido que o regime anterior é que impunha as “fronteiras” ou impedia a existência de ”auto-estradas e telemóveis”, embora admita que um grande número de jovens demasiado crédulos passe a acreditar que se deve também ao antigo regime não existirem, na altura, televisões a cores, play-stations, computadores pessoais ou mesmo o noivado do príncipe Filipe, a grande maioria dos jovens, avisada e inteligente, não nos levará a sério e falhará, também por aí, a bondade da pedagogia.
Da mesma forma que nenhum adulto pode levar a sério JMF quando este diz que “se fazia fila para comprar leite”. Ou JMF estava a pensar numa outra coisa qualquer quando escreveu esta frase ou confundiu o antigo regime com alguma das ditaduras do proletariado de outras partes do globo, pois dizer-se que se fazia fila para comprar leite antes do 25/4 é coisa que não lembra sequer ao pai da democracia! Ou então – hipótese mais provável – teve azar quando foi comprar leite e a loja estava cheia.
Confesso que isso me aconteceu, por vezes, quando era miúdo e ia buscar leite à mercearia do Sr. Mário, lá perto de casa. A coisa era particularmente irritante quando era a mulher dele a fazer os trocos, pois demorava imenso a dar-me o troco, preferindo ficar a trocar paleio com as freguesas. Estas iam enchendo a atarracada e sombria mercearia mas não ficavam em fila, à espera do leite, como aconteceu com o JMF: preferiam escarrapachar-se no balcão, alinhadas, com a mão que segurava o porta-moedas a apoiar, ao mesmo tempo, a cabeça cansada, enquanto a outra coçava a barriga, na doce conversa com a mulher do Sr. Mário e fazendo-a enganar-se, pela terceira vez, no troco que me devia dar. Embora, como disse, não estivessem em fila, foi a única coisa parecida com bichas para comprar leite que me recordo de ver no antigo regime. Diz-se por aí que hoje há muito mais bichas. Para comprar leite, claro. Basta olhar para um hipermercado num sábado à tarde.
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