A ENXAQUECA DE PILATOS: As personagens aparentemente menores, sobretudo as ambíguas, que acabam por desempenhar papeis cruciais, são interessantíssimas. O caso de Pilatos sempre me fascinou, e foi por isso com agrado, que vi Pacheco Pereira sublinhar a densidade da personagem, ontem, na Quadratura do Círculo. Pilatos, como Rommel, Dreyfus, e tantos outros, entram na História em rodapé, castigados por uma simplificação exigida pela narrativa digerível. Pilatos "teve a possibilidade da justiça e lavou as mãos", assim descendendo ao limbo dos sub-mitos.
É curioso como a própria origem do personagem permanece amarrada à incerteza. Já o nasceram em Sevilha - na Plaza de Arguelles existe ainda um palácio, outrora residência dos Duques de Alcalá, onde terá nascido Pilatos, daí se chamar, Casa de Pilatos - e em Tarragona, onde o pai, Marco Pôncio, ajudou o Império a combater os astúrios. Há quem assegure que era germano, nascido em Forscheim, à beira do Reno, e há, claro, a mais ou menos certificada origem romana. Herda do seu pai o nome - Pôncio - da sua tribo dos Pontii, tribo sâmnica, outrora mal vista, mas que por volta de 82 a.C. já possuia cidadania romana. Pilatos advirá de pilum, o que tanto se poderá atribuir à sua habilidade pessoal no manejo da arma, como da proverbialmente atribuida destreza desse manejo aos sâmnitas. O seu aspecto físico é mais variado do que o seu papel historico: obscuro indivíduo envolto num manto, nas placas de marfim do cristianismo primitivo, barba negra num fresco de Giotto do século XIII, barbeado e de sandálias nos codex medievais.
O Pilatos de Bulgakov, na Margarida e o Mestre, é um homem atormentado por terríveis enxaquecas ( como o Pilatos de São Paulo), tal como sua mulher, e que recorre às mais variadas poções e mezinhas ( foi por aí, nas minhas deambulações pela História das drogas, que o interesse pelo personagem amadureceu, valha a verdade). Bulgakov é atraído de forma peculiar pelo célebre diálogo: à pergunta quid veritas, Jesus responde "a verdade é que a tua cabeça está doente e por tal não fazes mais nada do que pensar cobardemente na morte". Pilatos indaga depois, como se sabe, se Jesus é como dizem, um grande médico, mas a resposta - "não" - desilude-o amargamente.
Pilatos utilizava, entre outros remédios, o betel, como alívio da patologia associada às cefaleias de origem migranosa de que padecia. Não propriamente o betel, como muitas vezes se diz, mas a noz de areca ( Areca catechu) misturada com lima e envolta em folha de betel. A noz de areca contem arecaidina, uma substância psicoactiva estimulante, com 7.500 a 9000 anos de uso, e propriedades não muito diferentes da cannabis, que ainda hoje, nos EUA, por exemplo , é utilizada legalmente em doentes com enxaqueca crónica.
Celso, no seu De Medecina, representando a súmula da prática romana, com influência alexandrina, não recomenda o betel, ou a areca. No Livro II, entre sangrias e purgas, o método de Celso não recorre a drogas indígenas e tão orientais, como o betel ou a areca. Mas Celso sabe o que Jesus sabe, a dor espalha-se e torna muito díficil o tratamento: Omnius etiam dolor minus medecinae patet, quim sursum procedit ( II.8.40-43).
Fosse Jesus um bom médico, Pilatos poupar-lhe-ia a vida? Tivesse Pilatos curado a enxaqueca, e interessar-se-ia pelo Filho de Deus?
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