A PIRANHA: No Causa Nossa ( link directo só disponível na coluna da direita) LFB informa-me que Saramago apagou todas as dedicatórias a outras mulheres nas suas obras pré-Pilar, substituindo-as pela singela "para Pilar". Isto significa no texto bem-humorado, mas também ácido, de LFB, que Saramago interpretou o que se poderá designar por "estalinismo romântico".
Tremi com a possibilidade de quase todos os homens dedicados terem uma costela estalinista. O normal é retiramos a fotografias, as ofertas, as marcas de anteriores relacionamentos quando nos engajamos à bolina da vida com a nossa mulher. Mas o curioso é que tal por vezes não basta: o cíume feminino, menos carnal e mais relacional, é por vezes absoluto. Tive em psicoterapia uma mulher que não só não tolerava as recordações de outras, como perseguia afanosamente todos os territórios afectivos rivais do amado. Assim, conseguiu que ele quebrasse a ligação com alguns dos seus amigos mais próximos, com a mãe, com o gato, enfim, com tudo o que viesse do passado. A ideia dela era que tudo que o amado amava antes de a conhecer constituia um ataque à relação, era pré-determinado por sentimentos que ela sentia como exteriores à relação, por tal ameaçadores. Certas coisas não conseguiu mudar - a filiação clubística, a caça, relações profissionais - mas não por falta de esforço. Os psicanalistas são dados aos exageros e à aldrabice, mas por vezes produzem interpretações sólidas e certeiras. Esta mulher é bem descrita por uma decana da psicanálise, Melanie Klein: provavelmente sofrendo de um sentimento abandónico, mal-amada parentalmente, preterida por irmãos mais novos, desenvolveu uma inveja voraz, deliquiscente. A relação com o seu amado devolveu-lhe a ilusão de controlar a balança dos afectos, assim se compreendendo a ferocidade demencial com que atacava tudo o que não pertencia à relação. Habitavam os dois naquilo que outro psicanalista, louco e genial, Paul Racamier, descrevia como a galáxia narcísica, termo que aplicava à relação da mãe esquizofrenizante com o seu filho. Resta que o parceiro desta mulher, que não conheci senão pela voz dela, se deixava envolver no casulo, beneficiando calculo, de um atenção tal, que lhe resolvia contas antigas.
Saramago concerteza que não habita este universo, as suas novas dedicatórias serão talvez fruto de uma paixão final. Mas noutro mundo, não está livre de encontrar uma piranha.
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