RECEBER: Depois de uma belíssima lapiseira em vidro oferecida pelo João Paulo Pedrosa, dedicado e crítico autarca leitor desta nau, recebo agora de outro leitor, Miguel de Montenegro o Persona Non Grata de Jorge Edwards. O Miguel com nome de Conde (de Montecristo), em vez de se vingar ( como o dito Conde) prebendou-me. Oferecer, se levarmos Focault e Nietzsche a sério, é sempre um acto de poder: um esmola, uma graça, um Ferrari, um elogio. Mas receber, o que é?
Somos todos bons aceitadores, desde que o que aceitamos não nos ofenda ou não nos dê trabalhos. Um elogio ao nosso carácter ou ao nosso pensamento recebe-se bem, uma crítica não. Depois há aquilo que fica no meio de território nenhum, aquilo que temos de receber, quer queiramos ou não, quer seja agradável quer não. A perda, a doença, a morte (às vezes o nascimento), a guerra. Na Berlim dos dias do fim, com os russos às portas, um cônsul escandinavo notou que as filhas adolescentes da fina flor nazi ofereciam a virgindade ao primeiro velho, estropiado ou soldado em trânsito que lhes aparecesse. A guerra tolda os espíritos, dizem-me. Mas não deixa de ser compreensível que as meninas quisessem oferecer algo de precioso, antes que lho tirassem à força. Os russos por sua vez estavam apenas a retribuir gentilezas recentes.
O que nos é oferecido pela morte, pela perda, pela doença, coloca-nos um pouco no mesmo plano das adolescentes alemãs, mas no outro lado do espelho. Elas ofereciam sem verdadeiramente o querer, nós recebemos sem, de todo, o desejar: a nossa omnipotência, imaginada, esfarela-se tão alegremente quanto um cão abana a cauda ao dono, na hora da despedida.
O ser humano guarda no umbigo a possibilidade de fazer o destino, a cristandade resolveu aceitá-lo, para desespero de Nietzsche. O que recebemos sem ter pedido é uma graça ou uma maldição, mas nas nossas vidinhas de jorna ganha jorna gasta, quando maldição, só pode assumir a forma de um destino. O que é curioso, é que quando é graça, já o destino não é para aí chamado. Julgamos indubitávelmente merecer o que Dis aliter visum, como se Rifeu em nós vivesse, em Tróia ou noutro lugar qualquer.
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