TRAPOS VELHOS: Há uma passagem na Trégua de Primo Levi, na qual o autor sai de um comboio polaco parado no meio de lugar nenhum, gelado, esfomeado, doente. Deixou há meia-dúzia de dias o campo de concentração nazi, sobreviveu ao que relatou no Se isto é um homem, e desde então é chutado de um lugar para o outro. Levi sai do tal comboio com o seu amigo O Grego e diz qualquer coisa como :" olhamos em volta e fomos à procura da famosa sociedade civil".
Na minha vida de marinheiro-terapeuta, a ironia deseperada de Levi vem-me à cabeça sempre que lido com velhos, sós e doentes. São cada vez mais, sós e doentes, consequência inevitável do progresso da medicina e do retrocesso do laço humano. Não têm psicólogos a falar por eles nos media ou a editar livros com prefácios famosos, não enchem capas de revistas imbecis, não produzem, não representam, nenhum valor civilizacional sagrado actual ( beleza, juventude, poder, dinheiro, carreira). Não têm anorexia, depressão, pais divorciados, problemas de excesso de play-station; não são atingindos pela toxicodependência, HIV, nem mudam de sexo frequentemente; exceptuando alguns sites na net sobre "mature lesbians & gays", estão fora da coisa. E no entanto existem.
Talvez porque os mortos não votam, aquela parte da esquerda solidária prenhe de superioridade moral que conhecemos, não lhes passa cartão. E no entanto, coisa curiosa, a qualidade de vida na velhice decadente é um facto social brutalmente dependente da condição económica: famílias ricas albergam velhos bem aconchegados em casa ou em bons lares, com excelentes cuidados médicos. Dir-me-ão que tal divisão também se exprime brutalmente noutros escalões etários; pois, mas crianças e jovens têm a possibilidade, ainda que remota, de ultrapassar a desigualdade inicial de oportunidades. Um velho de 80 anos, não.
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