A LIBERDADE FAZ 60 ANOS: Uma das vantagens do discurso dos orfãos é a falta de memória sedimentar. A divertida dicotomia de hoje entre a "a América boa" e "a América de Bush" aproveita-se da amnésia do povo: estes retóricos já qualificavam como imperiais as admnistrações de Reagan, de Bush pai e de Clinton. Quando Reagan chamava ao mundo soviético o "Império do Mal", muitos dos democratas de hoje exibiam orgulhosos os galhardetes do "pão para o povo", da "acessibilidade do sistema de saúde", da ausência de "exploração do homem pelo homem", bem como a certeza científica da profecia de Marx. O massacre de Katyin era uma invenção dos anti-comunistas ( que nesses tempos era um insulto), a invasão do Afeganistão e o Muro de Berlim "necessidades de defesa estratégica", os gulags delírios de dissidentes.
O incómodo da data que hoje se celebra é evidente em alguns lugares da blogosfera. Gostariam de poder dizer que os americanos só morerram na Normandia para melhor prepararem a partilha do mundo com os soviéticos ( à falta do tradicional argumento do petróleo, que de facto não abundava na França ou na Bélgica). Gostariam, mas não podem. Não por falta de vontade, reconheça-se. Talvez os conforte o sucesso da Moção de Oxford tanto na Câmara dos Comuns como em vinte universidades inglesas, no início de 1933, altura da consagração do cabo austríaco: "Pacifismo sem concessões; ninguém lutará, em circunstâncias algumas, pelo Rei e pelo País".
O Nouvel Observateur dedica esta semana um número especial ao Junho de 1944. Passam hoje precisamente 40 anos, já com o desembarque em marcha, por esta pérola do demissionismo e das possibilidades do artíficio retórico do pacifismo, proclamada pela rádio de Philippe Pétain e do seu governo colaboracionista:
"Français: les armées allemandes et anglo-saxones sont aux prises sur notre sol. La France devient ainsi un champ de bataille. Français, n'aggravez pas nos malheurs par des actes qui risquerait d'appeler sur vous de tragiques représailles".
No contexto actual, a outra grande vantagem discursiva dos orfãos é a natural apetência das pessoas pela paz. Qualquer debate pode ser ganho apelidando o outro de falcão e assinando uma moção para o enviar para a frente de batalha. Como se quem lutou e quem quer lutar, qualquer que seja o terreno e objectivo, não passe de um samurai desempregado. Compreende-se assim como muitos destes novos pacifistas militantes deixaram durante muito tempo, muita gente a lutar sozinha. E continuam a deixar.
Que triste deve ser ter de celebrar efemérides de hoje sempre contra alguém ou alguma coisa... Já agora, para completar a pintura, por que não falar da razia de Dresden, de Hiroshima e Nagasáqui, e do discurso nós-nunca-estivemos-no-Vietname? Afinal, quem é que tem memória selectiva? PC (o daqui)
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