O PESO DAS SOMBRAS: Quando a campanha para as eleições americanas parecia estar lançada a todo o gás, dois acontecimentos fizeram o passado dominar a agenda mediática presente. A morte e exéquias de Ronald Reagan e o lançamento, amanhã, do livro de memórias do ex-Presidente Clinton, My Life.
Esta obra volumosa de 950 páginas ainda não está à venda e já tem mais de 2 milhões de encomendas. As portas das livrarias estão cheias de filas de gente que aí se perfilou de véspera, à chuva ou sob o sol tórrido, para amanhã ter a certeza de que comprará o livro. Um pouco à semelhança do que se passa a esta hora na sede da FPF para os bilhetes para o jogo Portugal-Inglaterra. Este fervor pela leitura é aparentemente estranho, num povo de incultos e consabidamente intelectualmente inferior, como nos é ensinado desde pequenino na Europa, pelas inteligências locais do costume.
O livro foi um pouco mal recebido pela crítica (que a ele já teve acesso). O insuspeito New York Times apelida o livro de "aborrecido" e "propenso a adormecer o leitor". Parece ser opinião generalizada dos críticos que já leram o livro que as melhores partes são as descrições da infância no Arkansas.
Isto no entanto não invalida o verdadeiro blitz mediático que esta publicação criou. Clinton desdobra-se em entrevistas - entre as quais uma no programa Panorama da BBC, que passa na SIC Notícias, onde se descontrolou, irritando-se depois de perguntado insistentemente se estava sinceramente arrependido do affair com Monica Lewinsky. Clinton fala compungidamente desse processo, argumentando à sua melhor maneira: o meu comportamento foi errado, mas o processo de impeachment também o foi. Provavelmente tem razão.
Mas o mais curioso é a forma como fala destes episódios, referindo-se ao acompanhamento especializado a que teve de se submeter para explicar o seu comportamento pessoal. Como precisou de aumentar o sue auto-conhecimento para evitar cair em tentações em mentir aos que mais ama e ao povo americano. A explicação psicanalítica, que Clinton não se cansa de repetir, está na sua infância infeliz, sujeito a um pai alcoólico, e na forma como ela o obrigou a compartimentalizar toda a sua vida em mundos separados mas por vezes conflituantes: a política, a família, os amigos e as amantes.
Clinton faz pontaria com mestria a dois mercados: os que gostam de biografias de políticos, cheios de questões políticas maçudas, e os viciados em obras do tipo "Como ser melhor em 30 dias".
Esta excitação mediática a propósito do lançamento do livro lembra-nos como estamos perante um comunicador talentoso e um político carismático. E aí reside provavelmente o maior problema de John Kerry.
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