A IDEIA: Quando no post abaixo criticámos Kerry por não ter aproveitado totalmente o palco privilegiado que a convenção democrata, fizemo-lo sobretudo por não ter sido capaz de lançar uma ideia que venha a marcar o debate político até ás eleições. Afirmou-se apenas como o depositário do ódio a Bush. O presidente terá assim oportunidade de tentar lançar a ideia central da campanha.
De há algum tempo para cá, os republicanos têm vindo a namorar e testar a ideia de ownership society. Esta ideia poder-se-á tornar o tema da campanha republicana. Assenta na ideia de que a noção de propriedade é condição necessária para uma sociedade mais livre e para a criação e desenvolvimento de um sentimento de responsabilização e respeito do indivíduo perante e pelos outros. A expressão em inglês permite nuances, uma vez que ownership se refere não apenas à propriedade física de algo, mas pode também ser entendido como definindo um sentimento de pertença a uma comunidade ou de adesão voluntária e reflectida a um conjunto de valores e comportamentos. Um consulta a este site do Cato Institute permite conhecer os antecedentes e pressupostos filosóficos da ideia de ownership society - o Cato Institute limita-se a recomendar a aplicação deste conceito à Educação, Segurança Social e Saúde. Os republicanos têm indicado querer aplicar o conceito de uma forma mais vasta, aproveitando o sentido ambíguo da expressão, cobrindo desde a apologia da propriedade privada até à definição de medidas ambientais.
Não se pretende discutir aqui os méritos deste conceito: poder-se-á discutir a latente insensibilidade social de uma ideia que nada diz aos mais pobres, aos que nada possuem, nem têm perspectivas de vir a possuir. É certo, no entanto, que num país com milhões de proprietários de carros e casas e uma classe média que se define pelo que tem ou aspira vir a ter, o conceito de ownership society tem claras potencialidades eleitorais.
Sobretudo num país em que, na última década, todos os candidatos bem sucedidos têm sido os que lançam uma ideia forte. Bill Clinton em 1992, com o It's the Economy, Stupid, ilustrando e interpretando o sentimento da classe média em tratar da economia após o triunfo na guerra fria. O mesmo Clinton em 1996, com a Bridge to the XXI Century, dando uma ideia de modernidade e de criação de condições para o aprofundamento da revolução tecnológica e de informação dos anos 90. Bush em 2000 e o seu compassionate conservatism, acrescentando uma roupagem social às ideias conservadoras. E mesmo Gore (que, apesar de ter perdido uma eleição de forma sui generis, tem de ser considerado um candidato bem sucedido na divulgação da sua mensagem) se candidatou debaixo de uma ideia forte: a de defensor do little guy contra os gigantes empresariais.
Claro que num tempo especial, de guerra e ameaça terrorista, pode acontecer que nada disto interesse. Essa parece ser a aposta de Kerry: fazer da eleição um luta de carácteres e personalidades entre um herói de guerra (ele) e um presidente sem provas pessoais dadas nesse campo. Tem muito por onde atacar - desde o processo de detecção das supostas armas de destruição massiva (que, enquanto defensor da intervenção no Iraque, ainda me está entalado na garganta) até à gestão do Iraque pós-final das manobras militares. Kerry pode também criticar fundamentdamente a gestão económica de Bush, apesar da notória retoma de economia (os défices orçamental e comercial são claras fragilidades da Administração). Parece no entanto faltar-lhe uma ideia, um conceito, um slogan do que seria uma presidência Kerry (Stronger America, com toda a franqueza, não quer dizer nada e não é uma proposta, é uma boa intenção que pode ser partilhada por todos os candidatos).
Enfim, um atentado terrorista e se calhar tudo isto muda. De qualquer modo, na disputa da definição dos termos do debate político, Kerry parece estar a perder o pé. Ou apresenta um conceito, uma proposta, uma visão, ou arrisca-se a passar o tempo a discutir uma ideia na qual não tem nenhuma ownership.
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