"CHEIRA A PUM!..." Já não sei bem a propósito de quê, recordava há dias com um velho amigo episódios antigos da escola. Na turma de então havia um aluno fantástico, inteligente e espertíssimo que todos, dos professores aos colegas passando pelos contínuos (não sei se ainda se os designam assim) escutavam com atenção reverente. Pois o Marcelino (acho que assim se chamava o rapaz) era também um enorme brincalhão, sempre pronto a pregar partidas, principalmente aos menos avisados ou recém-chegados.
Uma das suas preferidas era a de se levantar da sua cadeira com enorme estardalhaço e berrar muito alto para o lado, com ar enojado: "cheira a pum!..." O colega da carteira, completamente inocente, ficava logo aflitíssimo, encarnado, a tremer, suado e as professoras perguntavam imediatamente, incrédulas: "cheira a quê, Marcelino?..." Aí o Marcelino, já conveniente e teatralmente afastado do infeliz colega, muito direito, punha uma pose séria, enchia o peito de ar e dizia com ar seráfico que pretendia mudar para uma carteira lá do fundo da sala, ficando sozinho. Que a senhora dra. (ainda não se tinha enraizado completamente o setôra) lhe perdoasse mas ele não podia explicar os motivos reais da mudança, do corte com o colega: eram questões pessoais. Dava timidamente a entender que o colega com os olhos lhe pedia que nada dissesse, embrulhava-se em explicações complicadas como a de que o colega era de relações familiares ou equivalentes ou coisa do género, que as famílias se conheciam, que razões de consciência o levavam a ficar calado, pelo menos enquanto isso fosse possível (devia pretender referir-se a uma potencial ida ao gabinete do presidente do conselho directivo...), multiplicava-se em explicações para o mutismo a que se votava mas tinha de mudar de carteira, o que geralmente sucedia, voltando a aula a uma normalidade aparente.
Com uma pequena diferença: Marcelino, isolado e calado na carteira lá do fundo, ria-se sozinho, para dentro, felicíssimo com o sucesso da sua brincadeira e imaginando já novas partidas.
O seu antigo companheiro de carteira, ainda vermelho, suado, vexado, sujeito à maledicência, às inquirições, às suspeitas, ao falatório, aos olhares, ficava provavelmente destroçado com tudo isso mas principalmente com a espatifada convicção de que alguma vez teria existido alguma amizade e respeito entre os dois.
As professoras, por seu turno, sorriam e lá ficavam com a ideia errada de que o pobre e inocente colega de carteira do Marcelino efectivamente se teria descuidado com qualquer pressão excessiva que o organismo, cruel, lhe teria provocado, em plena aula, e acreditavam mesmo que estranhos (embora inexistentes) odores povoavam a sala.
Mas os restantes alunos da turma sabiam bem que o real odor pestilento e nauseabundo que, curiosamente, saltava à vista ao invés de entrar pelas narinas, provinha do fundo da sala e tinha origem não numa qualquer pressão do organismo do infeliz ainda ruborizado mas antes numa questão de atitude do alegre brincalhão para com o antigo colega de carteira, Miguelito.
Post Scriptum: o episódio relatado é pura realidade ocorrida há mais de vinte anos no Liceu José Falcão, em Coimbra. Qualquer semelhança com factos mais ou menos actuais é mera coincidência pela qual não nos responsabilizamos nem concedemos contraditório.
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