A MINHA CASA É A TUA CASA: TOLERÂNCIA E HOSPITALIDADE: Giovanna Borradori, professora de filosofia no Vassar College, publicou no ano passado um livro, interessantíssimo a vários títulos, chamado Philosophy in a Time of Terror. Dialogues with Jürgen Habermas and Jacques Derrida.
Para além das reflexões sobre o problema do terrorismo e das suas implicações (culturais, políticas, filosóficas, etc.), é particularmente estimulante o diálogo com Derrida a propósito da noção de tolerância. Partindo das guerras religiosas entre católicos e protestantes, ou entre cristãos e não-cristãos, Derrida mostra como a tolerância tem, antes de mais, a natureza de virtude cristã (em rigor: católica), destinada a possibilitar a convivência pacífica entre a comunidade que detém o poder e os outros, "os infiéis", e que, por isso mesmo, é "uma marca suplementar de soberania": "deixo-te um lugar na minha casa, mas não te esqueças que é a minha casa".
A este substrato religioso junta-se a conotação biológica, ou organicista, que aponta para a mesma ideia de limite para lá do qual o organismo "tolerante" reage, "naturalmente", sob a forma de rejeição do organismo intruso.
Ambos os registos permitem com facilidade a apropriação política do conceito numa certa direcção: a "tolerância" como concessão, como privilégio outorgado por uma comunidade ao estrangeiro - o seu direito a ser deixado em paz enquanto se mantiver dentro dos limites que lhe são fixados.
Tudo o que leva Derrida a considerar que a tolerância é uma hospitalidade "condicional, circunspecta, cuidadosa"(e, por isso mesmo, Kant fazia assentar o "direito de hospitalidade" na verificação de que os homens, por possuirem a terra em comum, têm obrigatoriamente de se "tolerar" (dulden) uns aos outros). Assim, propõe, em sua substituição, um outro conceito de hospitalidade, a hospitalidade incondicional, que não deriva sequer de um convite, mas que está antecipadamente aberta àquele que não é convidado nem esperado, o "visitante absolutamente estrangeiro". Claro que, como o filósofo reconhece, essa hospitalidade não pode ter um estatuto político ou jurídico, até porque não pode, por definição, ser organizada - mas deve ser uma pré-condição, uma inspiração da outra hospitalidade condicional, nas suas concretas formas jurídico-políticas.
A preocupação de Derrida é pertinente e pode até aceitar-se a maneira como desconstrói o conceito de tolerância, sobretudo porque denuncia uma certa forma de apropriação política (em rigor: ideológica) do conceito. Mas a ideia de "hospitalidade incondicional", ainda que entendida como pré-compreensão e não como projecto exequível, dificilmente pode substituir a de "tolerância".
É que o problema maior dos nossos dias não é o da hospitalidade ligada ao "direito de visita" (Besuchsrecht) de que falava Kant, mas antes o da con-vivência e, em último termo, da integração (algo mais, até, do que o Gastrecht para o qual Kant já exigia expressamente um instrumento político-jurídico específico). Ora, o conceito de hospitalidade é demasiado exíguo para abranger as pretensões que dali derivam. Ao hóspede garante-se a preservação total da sua identidade (até, por vezes, a isenção das leis locais) exactamente porque é hóspede: alguém que está de visita, consciente também dos seus deveres enquanto tal, que o impedem de interferir na esfera sócio-política do anfitrião. Esta situação é muito diferente do acolhimento do estrangeiro cuja pretensão é precisamente inter-agir com o anfitrião, criando laços e atritos, reivindicando outros valores ao participar activamente no quotidiano da polis: esse não é um hóspede, na exacta medida em que nos propomos partilhar, não o espaço da casa, mas o próprio domínio sobre a casa.
O problema é então o modo da partilha (a con-vivência). E, porque esse modo (não necessariamente a partilha) se define, antes de mais, pela cultura da comunidade que recebe, é determinante o grau de tolerância (isto é: a abertura à diversidade) que ela exibe. Claro que, enquanto houver verdadeira diversidade, haverá limites para a tolerância: ela só deixará de ser necessária perante a uniformidade. Em consequência, a manutenção da ideia de tolerância no centro da questão torna a tarefa muito mais complexa, porque exige um exame aturado do que sejam, caso a caso, tais limites, denunciando, quando existam, o preconceito, a estupidez e a vacuidade das representações dominantes.
Ser hospitaleiro é fácil. Difícil é ser tolerante.
Apenas um comentário: parabéns pelo post. E a razão: quer que se queira quer não o problema aqui levantado ? e nos termos em que é levantado ? é incontornável.
Bom Texto! Mas um exemplo claro de que o desconstrutivismo, muitas vezes, não nos traz nada de novo face à realidade, perdendo-se numa espiral de palavras, dentro da palavra inicial. Que vantagens face à palavra inicial (tolerância) e tendo em conta os problemas reais de integração com que as sociedades actuais se confrontam, nos são dadas pelo termo utópico, hospitalidade incondicional? O PC é que (e a meu ver bem) centra o problema na tolerância. Uma pergunta: a cultura de quem vem também não influenciará o modo de partilha de quem está? Elói Varandas
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