SEGREDO E CRIME II: Na caixa de comentários a este post, o CParis deixou duas perguntas interessantes. Citando:
"1. um médico que assiste a uma criança maltratada pelos pais está ou não obrigado a revelar este caso (i.e. a quebrar sigilo)? 2. se um médico (ou enfermeiro) assiste um pai que tem ferimentos (eg. uma dentada) que foram provocados quando este estava a maltratar o filho, deve ser quebrado o sigilo?". A diferença das hipóteses sugere uma diferença fundamental no âmbito do dever de segredo consoante o paciente seja a vítima ou o autor do tal crime de maus-tratos. Porém, para os efeitos da pergunta, essa diferença é irrelevante. O segredo abrange todos os factos de que o profissional de saúde tem conhecimento em virtude da relação que se estabelece com o paciente. Exemplificando: se A contrai uma doença venérea por ter mantido relações sexuais com B (que não é paciente do médico de A), parece claro que o segredo abrange não só a doença de A e o facto de ter mantido relações sexuais com B, mas também o facto de B sofrer dessa doença.
O problema está então em saber se, em ambos os casos, o dever de segredo, existindo, deve ou pode ser quebrado.
Se aplicarmos aqui as ideias que deixei sinteticamente indicadas no post anterior, teremos de começar por determinar se o profissional de saúde é, ou não, funcionário público, no sentido do art. 386º do Cód. Penal. Se for esse o caso, encontra-se obrigado a denunciar qualquer crime de que tenha conhecimento no exercício das suas funções. Todavia, como escrevi no post anterior, o dever de guardar o segredo profissional é mais intenso do que o dever de denunciar, porque no primeiro caso estão em causa interesses pessoais e comunitários de grande relevância (a privacidade, a confiança pública no sigilo que envolve certas profissões), que só podem ser garantidos pelo portador do segredo, enquanto no segundo caso está em causa tão somente um dever lateral e secundário de auxiliar a função de perseguição penal, que se encontra cometida, primacialmente, a órgãos específicos (as polícias, o Ministério Público, etc.).
Assim, creio que se pode afirmar que o dever de denúncia do art. 242º do Cód. de Processo Penal não prevalece sobre o segredo dos profissionais de saúde, sem prejuízo de a solução poder ser diversa relativamente ao dever de testemunhar (art 135º, nº 3, do Cód. de Processo Penal).
Porém, em casos extremos, pode existir um dever de denúncia, não por força daquela norma legal, mas por força do art. 10º do Cód. Penal, quando a denúncia for o único modo de evitar a lesão muito provável e iminente de um interesse superior à privacidade do titular do segredo (p. ex., o caso do psicólogo que apontei no primeiro post). Esse dever de quebrar o sigilo incumbe a todos os profissionais, independentemente de serem funcionários públicos, e a sua violação, associada à prática efectiva do crime pelo paciente, pode implicar a responsabilidade criminal do portador do segredo. No caso que CParis aponta, dificilmente se configurará a situação de o profissional de saúde que atende os pacientes ser a única pessoa (monopólio de facto) que pode evitar a continuação do crime de maus tratos e, portanto, este dever não existirá.
Problema diverso é o de saber se o profisssional de saúde pode (= tem o direito de) quebrar o segredo sem ser criminalmente perseguido por isso. Como escrevi no post anterior, esse direito existe quando se trate de salvaguardar interesses manifestamente superiores aos interesses que o segredo visa preservar (direito de necessidade).
A avaliação dos pressupostos do exercício desse direito é entregue ao médico: se o médico se aperceber de que os maus tratos duram há já algum tempo e que são razoavelmente graves, fazendo prever a sua continuação, terá o direito de denunciar o caso às autoridades.
Já não será assim se, p. ex., a lesão - que até pode ser grave e exceder o poder correctivo dos pais, susceptível, portanto, de implicar a sua responsabilidade criminal por crime de ofensas corporais: p. ex., uma lesão do ouvido provocada por um puxão de orelhas desproporcionado - ocorrer fortuitamente, por razões bem determinadas, e nada fizer prever (nomeadamente, a atitude dos pais perante os factos) a sua repetição. Neste caso, pode existir responsabilidade penal dos pais, mas creio que o médico não tem o direito de quebrar o sigilo e denunciar o facto, porque não se trata aí de prevenir futuras lesões.
Espero que, apesar das inevitáveis limitações do formato, a "argumentação" se tenha tornado, agora, mais clara.
A chave da questão reside no nº 10 do CP. Toda a Parte Geral do CP informa a sua Parte Especial, condicionando-a, e tipificando-a até, sempre que ela a não derrogue. É este precisamente um caso desses. Assim, o segredo profissional cederá sempre que haja necessidade de preservar um bem jurídico superior. Mas tudo isto vem a propósito do caso do enfermeiro... Ora nesse caso, naõ existiria qualquer bem jurídico a proteger visto que se estava perante a consumação do aborto, donde a denúncia do Sr. enfermeiro apena spode ser considerada pidesca!
Não percebo a finalidade do exame legalista deste caso particular. Imaginemos que o enfermeiro teve conhecimento que o pai da criança minimamente informado do aborto e só à posteriori da própria gravidez. Pode ser ele condenado pela denúncia?
Bem, antes de mais agradeço-Lhe o seu esforço em tentar explicar como se deve proceder em casos tão simples.... Fico siderado ao ver a quantidade de artigos que teve de invocar, e perfeitamente esclarecido que um profissional não saiba a atitude a tomar perante um caso concreto.... Acho que se em Portugal estas leis fossem mesmo para ser aplicadas seria obrigatório a existência de gabinetes jurídicos nos Hospitais que prestassem apoio jurídico aos profissionais de saúde
Bom, não vejo que os sentidos de decisão que vão identificados no texto estejam assim tão distantes das soluções que os profissionais de saúde dão aos problemas. A atestá-lo está a verificação de que, na esmagadora maioria dos casos, os profissionais de saúde cumprem, correctamente, o seu dever de preservação do segredo profissional (e por isso a denúncia de um enfermeiro é notícia de telejornal!). Deste modo, a "invocação de tantos artigos" não é verdadeiramente o fundamento das soluções, mas apenas a ilustração legal daquilo que parece ser razoavelmente consensual no círculo dos profissionais de saúde.
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