BLASFÉMIA? NEM TANTO: F. J. Viegas, Vital Moreira e Rui Oliveira comentaram nos seus blogues, com preocupação e em sentido que julgo substancialmente coincidente, eventuais propostas de lei destinadas a restaurar o crime de blasfémia no Reino Unido e nos Países Baixos. Fiquei perplexo com a notícia e lembrei-me do Título LXXXXVIIII das Ordenações Afonsinas: "ElRey Dom Donis, com Conselho da sua Corte manda e pooem por Ley, que quem quer que descreer de DEOS, e de sua Madre, ou os doestar, que lhes tirem as lingoas pelos pescoços, e que os queimem".
Andei por aí a escarafunchar e, pelo menos no caso britânico, parece que as coisas não são bem assim. De acordo com o que aqui se diz, a polémica lei inglesa pretende apenas passar a punir o incitamento ao ódio religioso, tal como já pune o incitamento ao ódio racial. Tal como, aliás, o artigo 240º do nosso Código Penal pune, desde 1998,
"1. Quem:
a) Fundar ou constituir organização ou desenvolver actividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência raciais ou religiosas, ou que a encorajem"; e ainda
"2. Quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social:
a) Provocar actos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião;
b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião, nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade;
com a intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar".
Notar-se-á que não se trata aqui de crimes contra os sentimentos religiosos das pessoas (punidos nos artigos 251º e 252º), nem de proteger minorias étnicas ou religiosas, mas sim de crimes contra a Humanidade (desgraçadamente alcunhados, desde Julho deste ano, de "crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal", expressão margarina light que nada diz à tradição portuguesa nem ao direito internacional; mas isso são contas de outro rosário).
Ora bem. Mesmo que a dita lei inglesa não venha a munir-se das cautelas do Código português (necessidade de propaganda organizada, ou publicidade da difamação ou injúria, consoante os casos) e incrimine apenas o incitamento ao ódio religioso, não vejo que o direito de crítica e a liberdade de expressão possam ficar em perigo. Estes direitos, como todos os outros, também são limitados, e não incluem, seguramente, o incitamento ao ódio religioso, como não incluem a vulgar injúria, nem a apologia pública de um crime, nem, na Alemanha e na Áustria, a negação do Holocausto.
De maneira que não me parece que se trate de um excesso do "politicamente correcto". Só o momento da proposta é que foi, politicamente, muito incorrecto, levando algumas pessoas a interpretar como concessão ao Islão aquilo que, noutras circunstâncias, seria considerado normal. O que provoca, evidentemente, um aumento da tensão social acerca do tema.
Se somarmos a essa inabilidade política as preocupações dos secularistas e a má compreensão, por parte de comediantes e articulistas, daquilo que verdadeiramente se proíbe, é fácil perceber como nasceu esta improvável coligação (link corrigido).
[Última hora: D. Blunkett demitiu-se. Mas não foi por causa da lei]
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