OS OUTROS III: A Tatie, do Sem Pénis, nem Inveja, avança, e bem, com os medos; que eles nos prometem portos de abrigo demasiados solitários, que eles nos sugam a força. Vamos a isso, omitindo quaisquer dados que possam ofender a privacidade:
Conheci-a há um par de meses, vinha para um colega: dores de cabeça. Puxa daqui e coisa e tal, como se não fosse importante, fico a saber que lhe raparam já há dez anos o útero e os ovários. Como se o bastardo persistisse, tiveram que lhe cortar a mama esquerda, e desde aí , períodos sucessivos de quimio e radioterapia lhe animam os dias. Vigiar sempre.
Esta mulher tem uns olhos verdes capazes de pôr o mais contido a escrever versos idiotas, e também tem um filho, um marido e uma profissão liberal extenuante. Tem 30 e poucos anos. A certa altura tive de lhe perguntar: mas olhe lá, como é que você vive? "Muito bem; Trabalho, divirto-me, faço amor com o meu marido.. Chegamos à conclusão que ela é uma estóica iluminada: despede-te ( chora) do dia que passou, não esperes nada do dia de amanhã ( se quiserem o original em latim vão a Horácio, Odes, I, II, 8).
Na altura em que escrevo estas linhas a festa acabou, as dores de cabeça afinal eram metástases do bastardo localizadas no tronco cerebral; a minha estóica iluminada já nem sequer articula sons, do alto horizontal da sua cama de hospital.
Defendo que se pode aprender em qualquer situação. Deve ter sido ela que inspirou Séneca na sua 14ª Carta a Lucilius: não devemos viver para o corpo nem julgar que podemos viver sem ele.
Assim, Tatie, quer-me parecer que os medos de que falas, a bem dizer, não são medos: são gatos no peito. Já esta mulher conheceu os leões, coisa da qual estamos provisoriamente dispensados. Poderás dizer: "obrigadinho ó psi armado em filósofo de citações, mas como é que fazemos sem ter de entrar na jaula?" Não sei, claro; mas suspeito que passa por saber que se nasce dentro da jaula.
É curioso. Conheço os teus leões, já os vi! Mas pior do que lidar com eles é avistarmos impotentes jaula alheia de alguém muito querido. Afinal, não será o nosso medo um reflexo do que a envolvente nos oferece; assim, ver ruir as referências é dos medos o maior. Felizmente, tanto num caso como no outro, depois do medo vem a aceitação ... a sobrevivência assim o exige.
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