A NADAH ADIADA: Não há dúvida de que a capa do Público de hoje é impressionante, não há dúvida de que uma certa esquerda europeia ficou chocada com a participação dos iraquianos no acto eleitoral.
Mas também é certo que só um tolo poderá adivinhar no que aconteceu ontem uma vitória da ocidentalização, ou sequer uma vitória do projecto anglo-americano.
Comecemos pelos primeiros dois aspectos. É réstea de neo-colonialismo ( sobras do "orientalismo") a crença que a inteligência europeia tem naquilo que os asiáticos sentem ou querem. A belle gauche europeia acreditava saber que os iraquianos se estavam nas tintas para as eleições, que estavam revoltados com a ocupação, breve, que não iriam votar. É uma crença filha da epóca imperial, que eles tanto dizem abominar, isto de saberem à distância de milhares de quilómetros, confortavelmente instalados nos seus fauteils cosmopolitas, o que outros povos sentem ou deixam de sentir. E as crenças sofrem frequentemente a dura prova da realidade.
Os outros dois aspectos - que na prática são um só - também se baseiam na crença e na igorância. O que os conservadores muçulmanos temem não são categorias isoladas da modernidade ocidental. O que os oulémas e mollahs tradicionais temem, é o cepticismo epistemológico, a dessacralização do homem que acompanhou o projecto da modernidade europeia. Como relembra Souroush, a fiqh - a jurisprudência muçulmana - é uma linguagem de deveres, uma ciência das obrigaçoes e não dos direitos.
A renascença ( alcunha ocidental) muçulmana, a nadah, que se inicia a partir de 1840 e que termina com a II Guerra, sucumbe diante das revoluções islâmicas-socialistas porque, como diz Arkoun, não tinha sedimento suficiente. De facto, a nadah procurava um retorno à idade de ouro, não possuía nenhum fundamento racional-analítico, não bebia na ciência nem em modelos críticos do desenvolvimento social e político.
A exportação de temas ocidentais - democracia, eleições, secularização - para o Islão, terá a mesma sorte da nadah a menos que. A menos que os promotores do modelo sejam capazes de envolver os intelectuais, os universitários, os intermediários dos oulémas, na redefinição de um Islão aberto. Mas este Islão aberto nunca poderá ser o que o ocidente desenhou ou sonhou. O terrorismo é hoje consensualmente tido como o filho dilecto de duas identidades irredutíveis: da estratégia dos fundamentalistas muçulmanos dogmáticos, pensada na necessidade de imaginar um inimigo externo que compense as dissensões internas e a miragem libertária; e da cupidez e ignorância ocidental, apoiada tanto nas doutrinas neo-coloniais - eu faço o mapa, vocês dão-me o petróleo - como apostada na espalhafatosa enxertia de categorias ocidentalizadas num mundo pré-secular.O que for possível resultar, resultará do repensar dos territórios, culturais e geográficos, mas repensado ( sobretudo) pelos seus próprios habitantes : terá que incluir um novo mapa do dogmatismo religioso, terá de fazer as contas aos séculos de aparato colonial, terá de passar pela correcção daquilo que o ocidente fez de pior: suportar a velha ordem em troco da estabilidade do preço do petróleo.
Estas coisas não se fazem num dia de eleições.
ADENDA: tinha dito aos meus colegas de blog que para evitar chatices deixava de responder a comentários, mas o comentário do ( infelizmente) anónimo leitor é interessante e merece resposta. Eu também gostava de imaginar o terrorismo islâmico como um mero produto da década de setenta e dos fundos soviéticos, mas infelizmente tal não é verdade. Até em benefício de parte do argumento do leitor, recordo-lhe que já em 1956, a FLN ( Frente de Libertação Nacional) argelina estava em campo; o seu chefe em Argel, Yacef Saadi, recebeu na altura do Partido Comunista Argelino - obviamente financiado por Moscovo - dinheiro, armas e especialistas em explosivos. Mas se é verdade que o KGB treinou, armou e financiou, por exemplo, a massa crítica do terrorismo palestiniano, tal não implica que a tenha criado. Outras realidades, complexas, o fizeram.
As pessoas esquecem-se depressa. O terrorismo "islâmico" é só uma continuação e evolução do Terrorismo que se desenvolveu nos grupos da esquerda nos anos 70. O começo de grupos como as Brigadas Vermelhas , Bader Meinhof e congéneres àrabes (Fatah, FPLP etc) muito pouco tinham de Islâmico. Mas nasceram do apoio do KGB e da cultura politico/militar Soviética onde a vida de civis não é mais do que um instrumento ao serviço do estado. O ataque á escola Israelita de Maloot em 1974 no qual 20 crianças foram mortas com um tiro na nuca foi realizada por um grupo dissidente da FPLP e eram marxistas. 30 Anos mais tarde o feitiço virou-se contra o feiticeiro em Beslan , o falhanço do Marxismo no mundo árabe e/ou muçulmano não secou todas as suas sementes infelizmente. Quanto ao resto Ataturk já indicou o caminho.
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