BAI CO DONO: Da "Antologia Temática de Poesia Africana", organizada e recolhida por Mário de Andrade ( Instituto Caboverdeano do Livro, Praia, 1980), entre outras coisas interessantes, este excerto de um "texto crioulo" - Lala Kema - divulgado na Guiné-Bissau, na época da luta pela independência:
"Santcho preto bai co dono Pabia no povo cà misti Fidjo sima bôs, oh! Aio, sima bôs, Oh!"
Traduzido:
"Macaco negro traidor vai ter com os teus patrões Porque o nosso povo não quer mais Crianças como tu! Aio como tu!"
Se a referência à infantilização do negro, porque devedora das benesses do pai/patrão branco, não surpreende, já a classificação simiesca pia mais fino. Se recuperarmos uma lengalenga cara a Homi Bhabha ( um dos gurus dos area studies pós-coloniais), diríamos estar em presença de um exemplo da sua "não-dialéctica": és preto sofredor e macaco traidor, tudo dependendo da minha capacidade narrativa em identificar as estruturas de poder. Dito de forma simples, para os libertadores da Guiné, um homem era negro se estivesse do lado deles, passava a macaco ( traidor) se contemporizasse com o ocupante branco. Poderão pensar alguns dos leitores que tal dialéctica-do-lado-do-muro era perfeitamente natural em clima de guerra, ou pelo menos de conflito. Salvo que, se a utilização da palavra traidor ( ou porco, ou cão) talvez seja normal, a classificação de "macaco" é muito interessante: o negro-libertador, anti-colonialista, utiliza para com os seus irmãos a mesma representação antropo-depreciadora que o inimigo ( o branco ocupante) prefere: preto = macaco. Que pensar disto? Num primeiro nível, que a escolha do termo é deliberada; se nos trais ( e à causa), não passas daquilo que o branco ocupante pensa que tu és: um macaco. Isto alude a uma velha referência dos primeiros movimentos anti-coloniais, a saber, a de que o colonizado só alcança o estatuto de renascido, de pertencente a uma pátria, de homem, se for libertado do jugo colonial. Mas um segundo nível de interpretação é possível: a apropriação por parte dos movimentos de libertação, da linguagem depreciadora das forças de dominação, pode indicar a universalidade daquela e a inevitabiliade destas. Mas ainda um terceiro nível de análise se escapa sorrateiro: o colonizado-libertador integra involuntária e inevitavelmente as estruturas coloniais/imperialistas de diferenciação social (como único recurso) a fim de aparecer aos olhos de quem for preciso, suficientemente forte e poderoso. Coloniza-se libertando e vice-versa, que foi o que fizeram muitos impérios ( a começar pelos Han): connosco, o mundo, fora dele, a barbárie ( ou a selva...).
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