A "NOVA" DIREITA: 1) O FORMIGUEIRO: O fracasso da direita institucionalizada nas últimas eleições deu novo élan à chamada direita ideológica. A situação não é completamente original: a continuada incapacidade do CDS moderado, desde 1985, de superar a barreira dos 10% dos votos, abriu as portas do partido à direita ideológica, que se apropriou de uma estrutura e de uma marca para iniciar, de dentro para fora, um novo projecto; primeiro, sob a inspiração, depois, sob a batuta executiva, de Paulo Portas. A novidade da situação está no aparente fiasco da estratégia: Portas - que era, seguramente, o melhor líder partidário a que a direita ideológica podia aspirar - nunca conseguiu resultados superiores aos de Manuel Monteiro em 1995. Perdeu, nas últimas eleições, dois deputados, por razões que continuam a ser-me misteriosas - mas já tinha perdido, em 2002 e em plena derrocada do PS, um deputado. De maneira que a direita ideológica que apostava na força renovadora de Portas percebeu que não será o CDS-PP a dar-lhe expressão, pelo menos nos próximos anos. Nem, evidentemente, a fantasia aguirreana do PND. La vie est ailleurs. Assim, esta direita já começou a agitar-se. Porém, as suas manifestações recentes não lhe auguram, politicamente, grande futuro - nem como projecto estético, nem como projecto ético-social. Tomemos como tópicos ilustrativos dois artigos do Expresso desta semana: Tirar o retrato, de João Pereira Coutinho (JPC), e A (re)fundação da direita (1), de Jaime Nogueira Pinto (JNP).
A "NOVA" DIREITA: 2) UMA ESTÉTICA DA RUDEZA?: Em Tirar o retrato, JPC, a propósito do famigerado envio da fotografia de Freitas para o Largo do Rato, regressa a um tema que lhe é caro: a exaltação da aristocrática arte da rudeza. O ambiente dos seus textos sobre o assunto - e, aliás, sobre outros assuntos - recorda, inelutavelmente, a rebeldia de Miguel Esteves Cardoso. Mas há algumas diferenças importantes. MEC nunca pretendeu instituir uma estética que identificasse positivamente um quadrante político, nem, muito menos, esta ou aquela personagem. MEC fazia rir aqueles que se reviam nas manias, nos tiques, nas misérias morais que retratava de forma impiedosa. A política era pretexto do gozo - mesmo quando teve intervenções políticas activas. JPC faz, exactamente, o inverso. Constrói a estética apropriada para certo quadrante político e para os seus actores. Instrumentaliza o gozo e o sentido de humor para criar honras e coutos para os seus eleitos (cito de memória: "Portas tem classe"; "Portas é um cavalheiro"; "Os cavalheiros podem e devem ser rudes"), achincalhando, do mesmo passo, o "país medroso e servil" e a sua "ridícula pequenez". Mesmo que, para tanto, tenha de proferir afirmações contra-fácticas, como "Portas tem piada": a verdade é que, independentemente das qualidades que evidencie na sua vida pessoal, Paulo Portas nunca transmitiu - certamente porque não a quis - uma imagem pública de pessoa "com piada", ou sequer com sentido de humor. Nem como jornalista, nem como político. Claro que este tipo de discurso exclusivista, sobretudo quando dá forma à estética das gestas de cavalaria e dos duelos, gera sempre alguns prosélitos acidentais. Mas, para além do enorme risco de propiciar a confusão entre rudeza e vulgaridade, que JPC abomina, por parte de não iniciados, não parece que seja capaz, hoje, de promover uma apreciável adesão dos eleitores. E, em nota de rodapé, sofre de um pecado original: naquilo que possa ter de nobre, a estética da rudeza não é susceptível de proclamação. Não consta que Waugh ou Churchill a tenham apregoado.
A "NOVA" DIREITA: 3) UMA NOVA ÉTICA, OU A PERENE DEPENDÊNCIA DO CENTRO?: O artigo de JNP tem um título claríssimo: "A (re)fundação da direita (1)". Depois de explicar as razões que levaram os partidos "democráticos" (no entender do A., o PS, o PSD e o CDS) a banir os princípios "de direita" e a incorporar "valores de esquerda, linguagem de esquerda e 'tiques' de esquerda", JNP avança que "não sairá daqui uma alternativa, porque esta tem de ser por definição ('alter', outro) diferente do que está". A direita (a "verdadeira", portanto) deve (re)começar pelas ideias, que, como JNP admite, "são sempre as mesmas (...): uma concepção idealista do mundo e do homem; uma consciência crítica de realismo antropológico e social, que valora as comunidades e instituições, como a nação, a família, a propriedade; e que combate a tábua rasa que desconstrói e destrói tudo isto na planificação da utopia". Por fim, diz JNP não saber "se estes valores são património exclusivo da direita", valores que enuncia em seguida: "a defesa dos princípios cristãos", "o valor da nação como comunidade solidária dos cidadãos" e a "família e a propriedade, como realização do homem nos afectos e nas coisas e garantia da sua liberdade". Sabendo que se trata, apenas, do primeiro artigo da série com o mesmo nome, não devem fazer-se juízos apressados. Mas torna-se já manifesto que este acervo ético, de tão vago e principial, é insuficiente para fundar, não só uma "nova" direita, como qualquer corporação política autónoma, pois dele comungam todas as doutrinas mais ou menos radicadas no(s) personalismo(s). Excepção feita aos "princípios cristãos" - que também não podem ser, enquanto tais e sem mediação social, objecto de promoção política num Estado laico -, creio que todos os três partidos a que JNP concede o epíteto de "democráticos" reclamam, com gradações diferentes, aquela matriz fundacional. O problema não é a defesa da "nação": é saber se dela participam, mais ou menos limitadamente, para um número maior ou menor de efeitos, os residentes não portugueses. O problema não é a protecção da "família": é saber se deve ou não aceitar-se a constituição de famílias não tradicionais. O problema não é a exigência de "solidariedade": é saber se o Estado deve ou não levar a cabo, e até onde, uma política de efectiva redistribuição do rendimento. O problema não é a garantia da "propriedade": é saber se a propriedade deve ser radicalmente alodial, ou se só pode conceber-se no quadro de uma sua, mais ou menos apertada, vinculação comunitária. De outra maneira, o discurso é passível de apropriação por muitas tribos e, por isso, equívoco, e, por isso, incapaz de gerar uma doutrina política autónoma. Enfim, não pode esquecer-se que houve já, durante o regime democrático, algumas tentativas (tímidas, é certo) de fundar uma direita "diferente", nos valores e na retórica - que resultaram em estrondoso fiasco. Para além dos grupúsculos que nem chegaram a eleger deputados, foi assim com o anti-europeísmo de Manuel Monteiro e (então) Paulo Portas, contra a "venda da soberania a Bruxelas". Com a oratória contra a venalidade da classe política. Com a reabilitação da "lavoura" no léxico da propaganda. Com a necessidade de restrições à imigração. Com a equiparação do 25 de Novembro ao 25 de Abril. Enfim, com a representação irrealista de um Portugal retirado dos manuais da antiga quarta classe que os sucessivos resultados eleitorais mostraram não existir. Os "êxitos" onde se revê a direita ideológica (as privatizações, a oposição à descriminalização do aborto, a "flexibilização" da legislação laboral, o apoio à invasão do Iraque) só foram possíveis através do concurso activo e empenhado do "centro sociológico", o qual, como se vê, nem por isso passou a votar na direita partidária, que era até singularmente representativa da direita ideológica. Esperam-se, por isso, propostas mais concretas por parte da "nova" direita ideológica, que lhe confiram uma marca de água própria, no plano ético e político. Correndo sempre o risco, é certo, de redundar numa ideologia sem destinatários e de continuar a reduzir-se a uma estética - que, ainda por cima, reivindica uma natureza, hoc sensu, aristocrática. Uma peça de teatro a que o público não acorre, porque não gosta ou porque não o deixam, mas onde os actores se cumprimentam mutuamente pelas magníficas prestações.
Caramba Pedro, estou sem fôlego! Escreveste tudo de uma assentada? Bem, acho que a tua picardia com o JPC promete, ai promete, promete! Espero que não te coloquem de castigo na gávea, vais enjoar se a ondulação estiver forte! Venha a abordagem da direita, vamos ver no que dá em ser-se Pirata! :)
caro Pedro, gostei muito do seu post, e concordo com algumas das criticas que faz à reflexão do JNP (já que o seu texto parece, manifestamente, insuficiente), já no que diz respeito às criticas ao JPC devo dizer, com surpresa, que parece menosprezar a estética; esse elemento fundamental e fundacional da cultura e da ideologia. e a haver uma estética de direita, ela pode muito bem passar por ali...
Excelente texto. Espero que seja apenas um ponto de partida. Pela minha parte, continuo a achar que o problema não está nas ideias, mas na forma de adaptá-las a Portugal. Existe um deficiente entendimento da direita da portugalidade, que tem consequências na comunicação.
Obrigado a todos pelos vossos comentários (e um grande merci, Citoyen! para o último anónimo). Só queria dizer ao pgsanches que não menosprezo a estética, em abstracto, como "elemento fundacional da cultura e da ideologia". O que digo no texto é que a estética da "nova" direita não me parece atractiva para uma enorme maioria do eleitorado. E que por isso é, politicamente, ineficaz.
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