O NOME DAS COIMAS: Normalmente, não gosto de escrever aqui sobre direito, nem, muito menos, sobre aspectos técnicos do direito. Porém, há questões jurídicas que transcendem a dimensão da carpintaria - são questões de cidadania. Essas, políticas, agradam-me. No Causa Nossa, Vital Moreira interroga-se, com razão, sobre o (ir)realismo da regulamentação trazida pelo novo Código da Estrada. É provável que o aumento da severidade das sanções provoque o conhecido efeito de complacência com a infracção e o infractor. Ressalvadas as devidas proporções, já Montesquieu notava que a "atrocidade das leis impede a sua execução". Mas há um outro ponto em que também conviria começar a pensar. É que o novo Código da Estrada representa mais um passo na progressiva descaracterização do chamado direito de mera ordenação social (o direito das contra-ordenações e das coimas) a que vimos assistindo nos últimos tempos, diagnosticada há uns anos atrás, com lucidez e mestria, pelo meu Colega e Amigo Frederico da Costa Pinto, nas páginas da Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Este direito administrativo repressivo nasceu como um instrumento de mera advertência, para prevenir e reprimir condutas que não justificam a intervenção penal - é dizer, não justificam a severidade das penas criminais e, concomitantemente, os inerentes dispositivos processuais e garantias individuais. Só essa natureza de mera advertência, traduzida, necessariamente, em sanções pouco graves, permite legitimar as diferenças deste ramo de direito em relação ao direito penal, no que toca, por exemplo, ao respeito pelo princípio da legalidade e à competência para a aplicação das sanções. Ora, o que tem sucedido nos últimos tempos - e o novo Código da Estrada é o mais recente exemplo -, é que o Estado tem aumentado de forma brutal a gravidade das sanções aplicáveis às contra-ordenações (os montantes das coimas e as sanções acessórias, que implicam severas inibições de direitos). É certo que, aqui e ali, se têm aprofundado também as garantias individuais - mas de modo muito assimétrico, precisamente porque o fortalecimento da defesa não está inscrito na lógica deste sistema. O resultado deste duplo movimento é preocupante. Por um lado, a coberto da tal ideia de que se trata de meras advertências, aumenta-se o poder punitivo do Estado: - estabelecem-se algumas coimas cujo montante mínimo é sensivelmente superior ao salário mínimo nacional - e que ricos, pobres e remediados pagarão, em regra, por igual, dado o princípio do pagamento voluntário pelo mínimo; - punem-se condutas com elevado grau de indeterminação (p. ex., praticar "quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança"); - presume-se a prática da infracção mais grave quando, "sendo impossível a quantificação [da TAS], o condutor for considerado influenciado pelo álcool em relatório médico", equiparando-a à condução com uma TAS superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l; - atribui-se a uma autoridade administrativa a competência para a cassação da licença de condução. Por outro lado, e agora independentemente do tratamento assimétrico das garantias individuais, transforma-se o direito de mera ordenação social num verdadeiro direito para-penal, desvirtuando por completo a intenção que lhe subjaz. Para o Estado, é uma receita milagrosa: chama "coimas" a sanções que são verdadeiras penas, pelo seu conteúdo aflitivo, sem os incómodos ligados à lei penal e ao seu processo. Para a generalidade dos cidadãos é, em abstracto, um modelo muito positivo - enquanto os infractores forem os outros. Quer dizer: até ao dia em que nos calhar ser os outros.
Serviço público bloguista. Nos próximos dias, vários opinion makers dos media tradicionais, que obviamente não lêem blogues (colunista=anti-bloguuistas-que-lhes-podem-vir-aroubar-o-rendimentozinho-certo-desde-há-duas-décadas-e-meia...), irão aproveitar-se deste post notável, para ganhar mais umas coroas à conta de nós, os facínoras. Para a semana, em cadeia, lentamente, como é o ritmo do mundo velho, um assesor da presidência filtrará para os jornais as preocupações do "senhor-Presidente-da-República" sobre a regulamentação severa do novo Código da Estrada que promulgou sem reserva.
Excelente, meu caro Pedro. Para quando uma publicação científica sobre este assunto, tão importante juridicamente como aparentemente tão irrelevante politicamente?
Pois eu acho que muitas penas do Código da Estrada são irrazoavelmente brandas. Aplicar uma multa ou apreender a carta de condução a um indivíduo que conduz a 90 à hora numa rua de Lisboa é estúpido: o que é necessário é apreender a viatura, só essa pena disssuadirá eficazmente o indivíduo de voltar a fazer disparates.
O autor deste post certamente nunca esteve perto de ser atropelado numa rua da cidade. Se tivesse estado, e se fosse um peão, em vez de ser um automobilista, certamente pensaria de forma diversa.
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