FADAS E CYBORGS: Vai para aí um rebuliço por causa de um estudo que será apresentado num congresso de psicologia cognitiva, em Setembro ( !) em Gotemburgo. A tese do estudo vem resumida ( e adulterada) na secção "Insólito" do Público de hoje: as meninas que em pequenas se deliciaram com os contos de fadas têm mais possibilidades de virem a ser maltratadas em adultas. O estudo, pelo que li nas publicações on-line inglesas e em blogues de várias proveniências, é da autoria de Susan Darker-Smith, da Universidade de Derby. A senhora entrevistou 67 mulheres abusadas ( presume-se que violadas, batidas, etc)e descobriu que elas se identificam mais com as personagens femininas de contos como "A Bela e o Monstro" e "Rapunzel". Note-se, a investigadora em momento algum diz que descobriu que as referidas mulheres liam mais contos de fadas em pequenas que outras mulheres quaisquer ( presume-se que do grupo de controlo, que espero ter existido). A revisão da atitude textual ( para usar um termo caro a esta malta) face aos contos de fadas já vem desde os anos 70, tendo sido conduzida pelo glorioso exército feminista pós-marxista e pós -estruturalista.Teses oblíquas têm pretendido desconstruir a densidade capitalista e recheada de male-power que os contos de fada tradicionais apresentam: mulheres dóceis e frágeis, salvas por príncipes providenciais e corajosos. Compreende-se a embirração. A tese em voga, depois de Foucault e Derrida, e desenvolvida por Bruno Latour e Cynthia Cokburn, por exemplo, é a de que um discurso representacional que articula práticas e saberes, é essencialmente um discurso de poder. Os contos de fadas, com a sua gramática de mitologia popular , são geradores de representações sexistas, virtualmente destinadas a assegurar a sobrevivência de identidades de género docemente assimiladas. A autora, Darker-Smith, pergunta por exemplo porque razão Rapunzel tem de esperar pelo príncipe para ser salva, porque é que ela própria não arromba a porta da torre onde está aprisionada. O ponto essencial da investigação de Darker-Smith é que os contos da fadas induzem a ideia de que o amor é transformador, isto podendo ser perigoso, porque os maus machos não irão, afinal de contas, transformar-se em homens respeitadores, só por serem amados. Dito assim, um psicoterapeuta experiente como este sinceramente vosso, tende, empíricamente, a concordar. Mas algo recobre a extraordinária aceitação deste estudo: o amor não transforma, porque a amante parte de uma posição submissa, a esperança feminina precisando de ser reciclada. As teorias folclóricas de Donna Haraway ( outro ícone dos feminist, gender & cultural studies) sobre a libertação do corpo ( e das peles histórico-sociais a ele agarradas) e sua transformação em cyborg híbrido e multissexuado, espreitam nesta história. O cyborg de Haraway é uma criatura "para além do género", "pos-moderna e colectiva" (sic), e como escreve uma confessa admiradora ( Maria Teresa Cruz), "liberto da narrativa de Adão, da história da dominação, insensível a qualquer apropriação final de identidade, ou seja, o representante do fim do heterossexismo, do fim dessa diferença positiva ou negativamente sobrevalorizada"( sic). Como se pode especular, já não se trata de igualdade de sexos no plano simbólico, mas de aniquilação do sexo no plano metafórico: só sem diferenças sexuais se pode matar Adão e o predomínio capitalista-sexista, o amor só vem se vier por bem, ou seja, sem estruturas codificadas de alteridade. A Branca de Neve era afinal o oitavo a-não.
Sempre ao serviço do leitor, aqui vou eu ajudar o nosso caro Gonçalo P.. A inspiração em Foucault de autores das áreas de estudo que referi é abundantemente assumida pelos mesmos, e é fácilmente entendível; qualquer compilação do saber, enciclopédia ou literatura, é uma forma discursiva de poder: tende a ser utilizada em proveito da sociedade que a desenvolve. Não acusei Latour de coisa nenhuma, apenas dei a entender que ele dá uma ajuda (a partir da sociologia da cultura e da ciência, como qualquer pessoa que conheça a sua obra terá percebido), a algumas teses feministas actuais. Quanto a Cinthya Cokburn, recomendo-lhe, para que possa fazer o link na sua cabeça, o Sex inequalities and the youth training scheme, Mc Millan, Londres 1987. O espaço é pouco, mas é o que se pode arranjar, cumprimentos e volte sempre.
eu também concordo, que os contos de fadas tem que ser desmistificados para que não iludam as crianças numa realidade que não existe. E falo porque li tantos e tantas vezes que hoje ainda ando a procura do princepe perfeito, culpa de quem? dos meus pais que não me explicaram que só nas história existem pessoas perfeitas.
Este estudo cheira-me a parvoíce. Cheira-me, só; nem me dou ao trabalho de ir ver melhor, muito menos de dar palpites, porque não me interessa quase nada do que tenha «psic*» no nome. Agora, acho sinceramente que era melhor o FNV fazer o mesmo sobre matérias que não domina. Não vejo o que é o Foucault, a Haraway e a Cockburn (não falo pelo Derrida, que não li, nem tenciono) têm a ver com isto. E o Latour de certeza absoluta que lhe dava um chilique se ouvisse metade das acusações que aqui lhe faz.
Caro Felipe nao vou discutir a tese da sra em questao pois nao conheço. E tambem nao vou tentar pensar se as meninas do Brasil que cresceram tendo a MOnica e a Magali como modelo e depois na adolescencia se depararam com a Rebordosa apresentam ou nao traços semelhantes aos das "vitimas" da bela adormecida, rapunzel e cia. O que realmente me chamou a atençao e´a forma como Haraway e gender studies "malta" foram introduzidos no teu texto. Talvez valha apena tentar (se é que ja não tentou) dar uma chance então a Judith Butler ( bodies that matter) e ja aviso que não tem muito a ver com fadas, fodas e sapos. ;)
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