AO LONGE PARECEM MOSCAS: Os crimes do estalinismo foram únicos, pela dimensão da sua violência premeditada, pelo pré-texto ideológico que os escudava ( em nome do povo contra o qual eram precisamente cometidos), até pela tibieza e pelo tempo que demorou a serem reconhecidos de modo universal. A mesma coisa podemos dizer do crime nazi: não é comparável a coisa nenhuma, o seu nome não deve ser usado noutros lugares. No seu post ( passando ao lado dos remoques ), o meu caro amigo PC, contrapõe, se bem percebi, este argumento: Guantanamo e o Gulag, são e cito, " semelhantes enquanto espaços impermeáveis aos direitos e garantias individuais". Se a semelhança entre os dois espaços é a que PC desenha, temos um problema. Os direitos e as garantias individuais são pluridimensionais: tanto atento contra eles impedindo alguém de falar, como torturando a pessoa. Mas eu posso criar um espaço onde 100 pessoas são presas ao arrepio do direito, torturadas e impedidas de falar e outro onde um milhão de pessoas é morta à fome, à bala e ao frio. Pode também acontecer que um dos espaços exista numa sociedade que o pode vigiar, denunciar e combater, e o outro habite uma sociedade herméticamente fechada. Claro, são ambos espaços impermeáveis aos direitos e garantias individuais. Um leão e um gato, são ambos felídeos.Temos portanto um problema de classificação, que era o que pretendia discutir no post ao qual PC respondeu: graças ao seu estímulo, desenvolvo mais um bocadinho, mas sobre a classificação da AI. J.L. Borges tem um texto muito conhecido sobre o despautério de um taxonomista inglês do século XVII, John Wilkins, que criou um sistema pessoal de classificação da linguagem em 40 categorias. Através de um processo de decomposição, estas categorias dividiam-se de tal forma, que a certa altura, cada letra correspondia a uma categoria; Assim, um dado animal ou o título de um livro , no código de Wilkins, acabava por ter um nome completamente diferente. A classificação instaura um poder imenso, o poder de dizer o que uma coisa é, dentro do sitema classificativo criado. O aborrecido é que a classificação, a seriação, a ordenação, pretendem construir uma realidade sobre outra qualquer pré-existente. A classificação feita pela AI, porque é mais do que uma comparação, é de uma classificação que se trata, não é outra coisa do que a recriação do poder de dizer o que uma coisa é. É um exercício de poder, porque representa algo, esvaziando-o de qualquer possibilidade de auto e hetero representação. No caso em apreço, a AI desqualifica a memória e o texto específico do estalinismo carcerário, que foi construido ao longo dos tempos, por diversas vontades, leituras e testemunhos. Só fica a dela.O mesmo se passaria se alguém afirmasse que "Lisboa é a Atenas do tempo actual". Na célebre enciclopédia chinesa ( "Arquivo Celestial do Conhecimento Benevolente") que Borges cita no referido texto, o secretário do imperador classificava os animais em categorias que iam desde "os pertencentes ao imperador" aos "domesticados", passando pelos que "ao longe parecem moscas". Ao longe...
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