FUTEBOLÃNDIA III: O Augusto M. Seabra ( doravante AMS) faz-me, e com toda razão, uma interpelação certeira: como pode uma concepção liberal habitar com uma política cultural ao estilo de Malraux ou de António Sérgio? Eu não estou habilitado a tanto, preferia discutir com o AMS outras coisas. Nos posts anteriores quis dar a entender que se tem de contornar a televisão. O cinema é um, apenas um , dos vários meios ao dispor, no qual o Estado já gasta algum dinheiro. Não querendo discutir as várias configurações da neutralidade do Estado liberal ( Raz, Dworkin, Rawls) sempre adianto isto: quando o Estado apoia financeiramente a construção de dez estádios de futebol ou financia a produção de vinte filmes sobre os labirintos psicológicos do homem neurótico, está a favorecer uma ou outra determinada concepção de cultura. Nada a opor? Apenas se outras concepções tiverem a mesma atenção. Com a vantagem adicional, do meu ponto de vista, de essas outras concepções contribuirem para atrair uma grande fatia da população, que consome em excesso espectáculos boçais e que não pode ( ou não quer) consumir cultura de autor, por vezes excessivamente estilizada. Assim, por que razão é que nos haveremos de queixar de "dirigismo", se o Estado incentivar a produção de filmes sobre figuras da História e da cultura portuguesa? AMS pode sempre dizer-me que tal é virtualmente impossível: "Olhe agora sff o Sr. vai fazer um filme sobre Aristides Sousa Mendes". Dito assim, concordo, parece absolutamente sergiano. Mas dito de outra maneira, ou seja, dito com dinheiro e com meios, convidando pessoas competentes e politicamente abrangentes, já a coisa pia mais fino. Claro que contornar a televisão exigiria muito mais do que apenas uma boa política de cinema, mas seria um bom começo.
Serei o primeiro a admitir que num país em que não há possibilidade económica de produção de filmes sem apoio financeiro público há sempre risco de condicionamento de gostos, mas por favor não diga que se fazem vinte filmes sobre "neuróticos". Sobre Aristides Sousa Mendes, no tempo em que a RTP de facto produzia documentários , e com o apoio do instituto do cinema e do audiovusual, houve um, da Diana Andringa. Goste-se ou não, Oliveira tem inúmeras vezes abordado a história portuguesa em filmes como "Non", "Palavra e Utopia" (Vieira) ou "O Quinto Império. "Quem és tu?" de João Botelho é o "Frei Luis de Sousa" e o sebastianismo - e poderia continuar. Ironia da história, meu caro FNV : o chamado "canal da sociedade civil" veio acabar com o mais activo ramo do "serviço público" de televisão, aquele que nomeadamente devia ter como função estatutária produzir, emitir e ceder para divulgação programas de preservação audiovisual da memória . E acabamos por voltar ao ponto da partida - de facto quanto horas não de futebol mas em torno de despiques futebolísticos preenchem as televisões, incluindo os serviços noticiosos da televisão pública?
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