GUANTANAMO (I): THIS PARROT IS DEAD!: É um dos mais notáveis sketches dos Monty Python, onde se caracteriza, de forma implacável, a capacidade de alguém recusar a evidência - e o drama do interlocutor que procura o reconhecimento dela. No post anterior, o nosso FNV, que tem sempre a grande preocupação de denunciar - e nisso aproxima-se muito da Amnistia Internacional - os chamados double standards, condena quem chama a Guantanamo o "gulag dos nossos tempos", argumentando que são coisas diferentes. E são, de facto, coisas diferentes, mas não - ou não tanto - pelos motivos que invoca. A aritmética não é, em si, o factor mais importante na aferição da gravidade das violações dos direitos humanos, salvo quando serve para mostrar o projecto sinistro e desumano de onde elas resultam. É por isso que os crimes de guerra cometidos pelos Aliados durante a 2ª Guerra - impunes, na sua esmagadora maioria - nunca poderão ser comparados ao Holocausto. Também é verdade que Guantanamo não é local para se matarem, do pé para a mão, uns milhares de pessoas. Em tudo isto, FNV tem razão. São, também, coisas diferentes, embora FNV não se refira a este ponto, porque Guantanamo não serve, ao que se sabe, para armazenar, em massa, suspeitos e condenados por delitos de opinião. Mas são coisas semelhantes enquanto espaços impermeáveis aos direitos e garantias individuais, propositadamente criados com essa função (como, aliás, FNV reconhece) - em ambos os casos, por razões de Estado. E, aí, não se diga que a mesma coisa ocorre em Cuba, ou em Israel (ou, na verdade, em Portugal, no Reino Unido, em Espanha, etc.). Uma coisa é a privação de garantias, mais ou menos esporádica, mais ou menos frequente, em violação do sistema jurídico formal aplicável; outra coisa é a recusa formal da aplicação desse sistema de garantias a uma categoria de pessoas, como sucedeu com a recusa da aplicação das Convenções sobre prisioneiros de guerra aos detidos de Guantanamo. Creio que a expressão utilizada pela Amnistia Internacional se deve interpretar neste sentido. Enfim, há uma evidência que muita gente não consegue aceitar (eu sei, estou a repetir-me, mas voltarei a fazê-lo, qual Mr. Praline, cada vez que me tentarem vender um papagaio morto): é que o post do FNV, ao recusar uma equiparação entre o Gulag e Guantanamo, cai precisamente no mesmo equívoco que critica, mas pelo lado inverso. A diferença é radical e anterior: num caso, uma prática congruente com a própria ideologia do Estado; no outro, uma prática que renega os fundamentos mais sagrados da constituição do Estado. Assim, diferenciar o Gulag e Guantanamo através de "níveis" de gravidade das atrocidades é comparar as plumagens dos bichos sem reconhecer o facto evidente de que o papagaio está morto.
Não posso deixar de notar que, quando se fala dos crimes do estalinismo, PC encontra maneira de descobrir uma "lavagem" dos crimes fascistas, como que desculpabilizando-os pelo facto dos outros terem feito coisas piores. Mas quando se compara Guantanamo a um gulag, já se trata de uma comparação perfeitamente legítima, dada a comum privação de liberdades e garantias! Não haverá aqui uma contradição insanável?
"...outra coisa é a recusa formal da aplicação desse sistema de garantias a uma categoria de pessoas, como sucedeu com a recusa da aplicação das Convenções sobre prisioneiros de guerra aos detidos de Guantanamo."
Exacto. O que se passa em Guantanamo e' especialmente perigoso porque abre a possibilidade de, no contexto de um estado democratico, abrir uma excepcao 'a aplicacao dos principios legais vigentes. Acresce ainda que a decisao se um individuo e' um "illegal combatant" e' totalmente arbitraria ,e sem qualquer controlo legal. Guantanamo acaba por aparecer e existir com o consentimento tacito do Senado e outros orgaos politicos da Uniao, e tambem dos eleitores norte-americanos. O pretexto e' o medo do ataque terrorista e a discussao e' quanta liberdade temos de abdicar para garantir a nossa seguranca. Como sempre, as pessoas acreditam que so' a liberdades dos outros - os criminosos - vai ser sacrificada.
"No man is an Iland, intire of itselfe; every man is a peece of the Continent, a part of the maine; if a Clod be washed away by the Sea, Europe is the lesse, as if a Promontorie were, as well as if a Mannor of thy friends or of thine owne were ; and mans death diminishes me, because I am involved in Mankinde; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee."
E' um enxerto de estado totalitario numa sociedade democratica. Por isso, e' tao preocupante.
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