A PALAVRA MÁGICA*: Regularmente, surgem expressões na nossa comunicação quotidiana que tendem a replicar-se com uma frequência assustadora, passando a dominar, até à náusea, os processos comunicacionais nos mais diversos registos. A maior parte das vezes, trata-se de palavras ou expressões incomuns (em si mesmas, ou no contexto em que se inscrevem) utilizadas por "pessoas públicas" (actores, políticos, desportistas famosos, etc.): quem não se lembra, para dar só alguns exemplos, do "ópramim!", do "safa!", do "é da vida", do "este homem não é do Norte", do "eles falam, falam, falam"...? A generalidade destas palavras e expressões não possuem a propriedade específica de modificar a substância da conversa, ou a atitude dos conversantes: limitam-se a introduzir uma nota dissonante, normalmente de humor (tão mais eficaz quanto a referência for descontextualizada), no acto comunicacional. Porém, assistimos nestes dias ao nascimento de uma verdadeira palavra mágica, uma espécie de pedra filosofal da retórica, que transforma o próprio sentido do discurso: o "é complicado", acrescido de reticências ou sem elas. É comum deparar com dois sujeitos, que se encontram envolvidos na mais acesa discussão, até que um lança o olhar para o vazio e pronuncia o "é complicado...". Imediatamente, o contendor baixa os olhos, e acena com a cabeça, mais ou menos lentamente, consoante a gravidade posta pelo outro no seu "é complicado" (e não consoante a efectiva complexidade do assunto subjacente). Em casos extremos, o interlocutor, mesmerizado, repete, ritualmente: "é complicado..." (aqui, tem sempre reticências). A expressão possui, como se deixou implícito, grande poder de pacificação social. Alguns exemplos: o estudante a quem se pergunta, no fim da oral, a que se deve a má prestação que conduzirá ao chumbo: "já fiz três cadeiras, todas muito juntas, é complicado..."; o professor que explica ao estudante que vai chumbar: "o senhor não sabe isto, isto e aquilo... assim, é complicado..."; o polícia que redige o auto de contra-ordenação: "o senhor pisou um duplo risco contínuo; se fosse só um risco contínuo... assim... é complicado"; a casa de electrodomésticos que, contra o que apregoa, tenta não devolver o dinheiro ao cliente insatisfeito: "se quisesse trocar por outro artigo... mas devolver o dinheiro, é complicado"; o Presidente da República, em relação a um referendo que não quer convocar: "esta matéria é importantíssima; mas convocar um referendo para essa altura, é complicado"; o canalizador que se prepara para recusar uma chamada de urgência: "eu posso ir aí, mas hoje é complicado...". Em todos estes casos, há uma forte probabilidade de se alcançar, através da palavra mágica, um consenso milagroso em situações de tensão. A única classe a quem está vedado o uso da palavra mágica é a dos aprendizes de relojoeiro. Quando examinam as entranhas de um relógio, não lhes passa pela cabeça dizer ao mestre: "hummm... isto é complicado". E - ironia própria dos fenómenos místicos - são eles quem verdadeiramente trabalha com complicações. P. S. Outra das expressões místicas cujo abuso domina a comunicação contemporânea é o "politicamente correcto". A ela voltarei brevemente. * Para o Américo de Sousa
Quanto ao politicamente correcto, não se canse, o Pacheco Pereira já explicou. Mas não me espanto que não lhe agrade o uso e o abuso da expressão. Com talento, quase nos vai convencer que tal coisa não existe.
Uma vez que me faz a pergunta, tentarei responder-lhe de forma breve e incompleta. É uma arma fácil, sim, pois que imediatamente simplifica, representa, se quiser, um universo opinativo. Quanto a ser desonesta, tenho as minhas dúvidas: a ideia da correcção politica implica a existência de um lado bom e justo, e frequentemente, quem se lhe opõe é que ( desonestamente?) imediatamente desqualificado. Mas enfim, aguardarei o seu texto, com interesse e curiosidade; falaremos depois, se você assim o entender.
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