HOSPITALIDADE, TOLERÂNCIA E DIFERENÇA:Hospitalidade e tolerância são duas ideias que por vezes se confundem, provavelmente porque ambas giram em torno da diferença. E, todavia, não pertencem à mesma área da experiência social, por força da diversidade das respectivas raízes, dos deveres em que se traduzem e dos sujeitos que beneficiam. Num momento em que, paradoxalmente, regressam as pulsões do Estado territorial e da cartilha moral única - partilhadas pelas correntes mais desvairadas, sob o máximo denominador comum da luta contra o politicamente correcto -, proponho-me escrever aqui um post, mais que correcto, politicamente impecável.
1. Hospitalidade No Terceiro Artigo Definitivo para a Paz Perpétua, Kant definiu a hospitalidade como o dever correlativo do direito de visita (Besuchsrecht), sc., o direito que assiste a todo o estrangeiro que pisa terra alheia de não ser tratado com inimizade. Este direito (que Kant distingue expressamente do direito de residência / estabelecimento [Gastrecht]) não deriva de uma qualquer preocupação "filantrópica", mas sim da originária posse comum da superfície da Terra. Não é uma graça, uma atenção, sequer uma virtude, mas um dever: enquanto se mantiver em paz, o estrangeiro tem o direito de ser deixado em paz. A hospitalidade é devida, portanto, ao estrangeiro que nos visita temporariamente. A primeira nota interessante a destacar na formulação de Kant é o conteúdo meramente negativo da prescrição: não tratar o estrangeiro com hostilidade. Tudo o que vá, positivamente, além dessa obrigação de abstenção - receber o estrangeiro, fazê-lo sentir como que em casa - não será um dever jurídico, mas um acto de cortesia. A segunda nota, que agora mais me importa aqui, é a concessiva implícita. A paz doméstica é um direito de todos os cidadãos (entendidos como membros de certa comunidade)e, por isso, o conceito de hospitalidade só faz sentido se quisermos dizer: apesar de estrangeiro, ele tem direito a ser deixado em paz. Mais de 300 anos depois, apetece reexaminar o âmbito do dever de hospitalidade e o círculo dos seus beneficiários. No que ao primeiro diz respeito, nós, feitores de aquém e além Adamastor, estamos bem colocados para apreciar o valor da hospitalidade. Sabemos que ao estrangeiro, por sua própria condição, não basta ser deixado em paz - embora essa seja a dimensão básica do seu direito, ainda hoje incompreendida por aqueles que, olhando para o passaporte na fronteira, perguntam a quem chega se vem dedicar-se à prostituição. Na verdade, o deslocamento confere ao visitante o direito a prestações especiais por parte do anfitrião, sem dependência de uma futura e eventual retribuição (pois é um direito, e não a assunção de uma dívida), embora assente, naturalmente, numa base de reciprocidade, não por causadarelação que aí se estabelece, mas por causada universalidade do dito direito. Prestações que não tornam o visitante num residente - sob pena de perder aquele estatuto especial -, mas que atendem à posição especial e temporária de quem visita. Coisas simples: o visitante tem direito, p. ex., a que não lhe buzinem quando, hesitante, pára o carro num cruzamento; ou a obter, sempre que possível, as informações de que necessita numa língua que compreenda; ou que lhe expliquem, junto à fonte de montanha onde pretende comungar com a natureza, o significado da expressão "água imprópria para consumo" gravada na tabuleta. Acima de tudo, o anfitrião não pode tomar para si a máxima segundo a qual em Roma se deve fazer como os romanos - Roma, em todos os seus regimes, era uma cidade imperial. No que diz respeito à segunda nota, e atendendo ao contexto d'A Paz Perpétua, é possível que Kant, referindo-se ao estrangeiro como Fremdling (hospes, stranger, estranho) tivesse em mente apenas o Ausländer (hostis, foreigner, forasteiro). Seria precisamente essa diferença radical suposta no estatuto do estrangeiro que justificava uma consideração específica sobre a sua condição, igualando-o na garantia da paz doméstica atribuída aos cidadãos. Mas hoje, à luz da mesma lógica de diferenciação positiva do estrangeiro que proponho, talvez se justifique regressar ao conceito mais amplo de Fremdling como estranho, o outro-outro que não pertence ao nós. Porque hoje o estrangeiro não é só (ou nem é tanto) o nacional de outro Estado. Os processos de fragmentação, estratificação e aglutinação social criaram sociedades complexas onde habitam, por vezes, várias comunidadesseparadas, ainda que inseridas no mesmo Estado e assim sujeitas a essa nivelação formal. Por isso, estrangeiro é também o homem do campo que tenta obter, no hospital da capital do seu distrito, que desconhecia até aí, informações sobre a mulher internada; ou o analfabeto que tenta perceber, numa repartição de finanças, o que é o IRS; ou o turista que não conhece os vícios das marés más e se faz, perigosamente, ao passeio. Todos eles, estrangeiros-visitantes-temporários, têm um direito de hospitalidade relativamente à comunidade anfitriã, que não só não pode hostilizá-los por serem estrangeiros, como deve suprir as agruras do deslocamento. Nada disto tem que ver com tolerância.
2. Tolerância Diversamente da hospitalidade, a tolerância não tem por destinatário um estrangeiro-visitante (um outro-outro), mas sim os restantes membros da nossa comunidade. Não brota do deslocamento a que está temporariamente sujeito aquele primitivo compossuidor da superfície da (nossa) terra, mas sim da própria liberdade que, conjuntamente com os outros-nós, nos garantimos mutuamente na nossa quotidiana convivência. Liberdade, portanto: pois esse nós é uma reunião (e, de algum modo, redução) de múltiplos nós-diferentes. Evidentemente, a tolerância deverá encontrar-se na razão directa da liberdade: numa sociedade sem liberdade, nada há a tolerar; por outro lado, a instauração de vastas liberdades numa sociedade intolerante conduz ao conflito permanente, quando não à anarquia. É certo que as teorizações de Montaigne e de Locke (na Letter concerning Toleration, não nos Two Treatises), relativas à liberdade (e tolerância) religiosa, não podem transpor-se, sem mais, para os problemas que levanta uma sociedade secular. Mas o princípio básico continua inalterado: a tolerância é co-natural à liberdade, na exacta medida em que esta implica um direito (de todos) de ser diferente (de todos). A tolerância é a acomodação das liberdades de todos e, por isso, tem de ser tanto mais ampla quanto mais latas elas forem. Ainda assim, sobra o problema da identificação da diferença que reclama tolerância, e isto num duplo sentido: por um lado, há que descartar as dissemelhanças que não chegam a ser diferenças e que, por isso, não reclamam tolerância; por outro lado, há que demarcar a diferença intolerável - e essa só pode ser aquela que a liberdade não cobre. A primeira questão é relativamente simples, mas, como há evidências que hoje convém repetir, enuncia-se assim: se a tolerância é a acomodação das liberdades diferentes, só a diferença que potencialmente contende com a minha liberdade tem que ser tolerada. Deste modo, não tem sentido falar de tolerância em relação aos homossexuais, protestantes, brancos, benfiquistas, pretos, budistas, heterossexuais, mulatos, transsexuais, católicos e comedores de pepino cru. Ser qualquer uma destas coisas não limita a liberdade de ninguém e, portanto, não requer tolerância: só o simples respeito cívico. A segunda é, apenas, todo o problema da constituição da cidade, do qual me escusarei, obviamente, de falar em abstracto. Porém, sejam quais forem os arranjos e os equilíbrios que aí se encontrarem, uma coisa é certa: a expansão da tolerância não é apenas função, mas também motor, do aumento das liberdades.
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