PERMANENTE: Ao contrário das avaliações morais, episódicas e imbricadas em cultos de personalidade ( ver post anterior) , as actuais relações dos portugueses com a autoridade são mais estáveis. O português obedece não porque entenda que dessa obediência resulte algo de positivo, mas por que é obrigado a obedecer. Calculo que 48 anos de Estado Novo e 3 ou 4 de anarquia tenham contribuido para isso. Mas estamos em 2005. Existe, é certo, um útero psico-social mais elástico e produtivo, que tem sido aliás incansavelmente referido: a pequenez do território, a ausência de diferenças sangrantes entre nós, a falta de comparência a todas as fases da industrialização. Seja como for, a relação com a autoridade é baseada num triplo eixo : desconfiar sempre, desobedecer muitas vezes, respeitar quando for inevitável. A autoridade é sentida pelo português como um abuso exterior, quase sempre perpetrado por "eles", essa entidade misteriosa oculta algures no Estado. Já na esfera privada, entendemos perfeitamente a autoridade: é a do mais forte. A do pai, do padre, do assaltante de faca na mão. Evidentemente, isto significa uma lacuna de sentido social, de politeia, e reforça o espírito comunitário, de aldeia. Da combinação do triplo eixo motivacional com a estruturação colectiva, resulta um relacionamento com a autoridade que o comportamento ao volante ilustra bem. Não ultrapassamos traços contínuos nem estacionamos em cima das passadeiras, porque tal seja objectivamente errado, mas porque um polícia nos está a observar. Assim, a autoridade é continuamente empurrada para a periferia da nossa zona comportamental, a ela se entregando a única réstea de laço social. Não admira que não gostemos da autoridade: ela recorda-nos, com frequência assinalável, que estamos sozinhos.
O problema dos portugueses com a autoridade (e julgo que é também o que o Filipe identifica) é a falta de capacidade de discernir entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. Temos dificuldade em perceber a razão das regras de conduta em sociedade. As regras de conduta têm subjacentes princípios e regras de outra ordem ? (correndo o risco de ser treslida, diria que são morais) - que as fundam, moldam e explicam. Quem não tiver estas bem inscritas na sua tábua de valores, não percebe aquelas e não vê razão para lhes obedecer.
Sem me alongar muito, pego no seu exemplo do (mau) comportamento ?estradal?: as regras de trânsito existem para salvaguardar um bem individual da maior importância, a integridade física/vida, própria e alheia, e um bem colectivo igualmente importante: o funcionamento normal do trânsito (imagine-se se cada um pudesse conduzir por onde quer ...). Ora, a vida e o interesse colectivo da comunidade são dois bens absolutamente essenciais e ?bons por natureza?. Violando as regras de trânsito, coloco esses bens em risco. Sou, incivilizada e até uma potencial criminosa.
Tudo isto para concluir que o que é necessário antes de mais (e que me parece que falta muito) são os valores básicos que devem presidir à formação da personalidade. Penso que é, acima de tudo, uma questão de (falta de) educação, não apenas de instrução (da que se recebe nas escolas. Nas de condução e nas outras.) Mas também, sem dúvida, uma herança de 48 anos de relação difícil com a autoridade. Não percebo é onde é que a autoridade me lembra que estou sozinha. Rita Maltez
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