O VAZIO POLITICAMENTE CORRECTO: Há já muito tempo que quero escrever uns posts sobre esse conceito fundamental da retórica contemporânea: o "politicamente correcto". Infelizmente ainda não me sinto preparado para tanto. Mas as três ideias essenciais são as seguintes: em primeiro lugar, a expressão tem sido tão abusada e adulterada que já não significa nada de substancial; em segundo lugar, e em consequência, qualifica-se de "politicamente correcto", com intuito crítico e depreciativo, aquilo que é, apenas, correcto, no plano ético ou político; por último, aqueles que mais vociferam contra o "politicamente correcto" não vêem que a sua crítica se institucionaliza e vulgariza de tal modo que se torna, ela própria, numa entidade politicamente correcta (Américo: vamos conversar sobre isto?). Um exemplo da última proposição pode encontrar-se no editorial de Vítor Rainho (revista Única desta semana), verdadeiro monumento à vacuidade politicamente correcta. Uma colagem de lugares-comuns que, se tivesse uma ideologia consistente a suportá-la, poderia chamar-se propaganda. Mas nem isso. Vejamos:
1. A abrir, o imprescindível momento do medo, corporizado nos elementos que nos remetem para os nossos temores bíblicos ancestrais - o fogo e a água: "O rastilho está aceso e ninguém sabe onde a bomba irá explodir e qual a sua intensidade. Mas parece evidente que os confrontos de França, nomeadamente nos arredores de Paris, poderão ser a ponta de um icebergue que se derreterá na Europa e causará graves (enchentes) danos". Destaque-se, desde logo, o sentido de oportunidade: num momento em que os confrontos começam a diminuir de intensidade, afiança-se que se trata apenas do "rastilho" de uma bomba que irá explodir - embora ninguém saiba exactamente onde, nem qual a sua intensidade. Mas tudo indica que será nos países nórdicos, pois fará certamente explodir o tal icebergue, que depois derreterá, etc. Notar-se-á também, não sem ternura, a pouca confiança do articulista na expressividade da metáfora do icebergue, ao colocar a consequência "enchentes" entre parêntesis, adicionando-lhe, pelo sim pelo não, o denotativo "danos".
2. Depois, vem o momento onde é que eles estão agora, hã?!, em que o editor narra a realidade, tal como a percebeu: "Há uma década, sempre que alguém levantava o problema da integração das comunidades estrangeiras, logo os politicamente correctos os conotavam como «fascistas» ou com um mimo menos pesado: extrema-direita". Na outra realidade, aquela a que Vítor Rainho não teve acesso, há vários partidos de esquerda e de extrema-esquerda, por toda a Europa, que, desde há muito, levantam o problema da integração das comunidades estrangeiras, das mais diversas maneiras - embora não exactamente da maneira pela qual Vítor Rainho talvez gostasse de o ver levantado. Nessa outra realidade, chamava-se «fascista», e de extrema-direita, àqueles que não queriam a integração das comunidades estrangeiras.
3. A seguir vem o momento a realidade é inexorável, e é pena (demasiado enfadonho para ser transcrito), onde se lamenta que as grandes cidades europeias tenham passado a ser cercadas por betão, diluindo-se nos subúrbios sem espaços verdes, cheios de desempregados, caldo perfeito, portanto, para a marginalidade. É bem verdade, Vítor Rainho, e é mesmo pena. Só não se percebe qual é a responsabilidade das comunidades estrangeiras nesse processo. Dominarão elas os organismos responsáveis pelo ordenamento do território e pelos planos urbanísticos? Terão elas invadido, manu militari, lugares tão aprazíveis? Teria sido melhor construir bairros sociais que os alojassem na Lapa, em Hampstead ou Primrose Hill, ou nos VIIème e VIIIème arrondissements?
4. Depois, há o momento da perplexidade perante o insondável: segundo Vítor Rainho, quem advoga a teoria de que a raiz dos males está no ambiente dos subúrbios "não conseguiu explicar por que razão não é generalizada essa tendência. Nos bairros onde vivem os jovens de origem magrebina que têm transformado a Cidade Luz na cidade do fogo, não são muitos - longe disso - os que entram neste jogo de espalhar o caos". Incrível, não? Como é possível que, nesses bairros, e contra todas as expectativas, não sejam muitos os jovens magrebinos que incendeiam carros? Eu também me espanto. Curiosamente, há registos de fenómenos análogos: nas favelas cariocas, por exemplo, e por motivos inexplicáveis, nem toda a gente trafica droga. Só podemos concluir que a nossa capacidade de compreensão do Homem é ainda muito limitada.
5. O 3º parágrafo do editorial contém o momento os bits não podem ser riscados, onde se fala, a propósito disto tudo, da facilidade de comunicação através da internet, telemóveis e outros instrumentos demoníacos que potenciam o Mal, de nada valendo aos governos "decretar a censura". Tempos terríveis.
6. O texto caminha para o fim com o momento quem te avisa...: "Aqueles que chamavam fascistas e «skinheads» aos que alertavam para o problema bem podem começar, de facto, a preocupar-se com confrontos entre a extrema-direita e os agitadores. Afinal, em casa que não há pão...". Este é o momento mais denso do texto e a sua interpretação não é evidente. Todos os que eram chamados de fascistas e de skinheads "alertavam para o problema"? Haveria, neles, diferentes, digamos, formas de "alertar para o problema"? Os homicídios motivados por ódio racial são uma forma de "alertar para o problema"? Quem chamava fascistas e skinheads àqueles que, professando de forma assumida ideologias nazis, incitam ao ódio racial e acreditam na superioridade de uma raça, deve deixar de o fazer? Se sim, para quê? Para "começar a preocupar-se com confrontos entre a extrema-direita e os agitadores"? Mas quem é a extrema-direita? Os fascistas e os skinheads? Estou confuso. E a parte da casa sem pão não me ajuda.
7. Enfim, o texto termina com o momento supra-hiper-politicamente-corrrecto dos tempos modernos, já anunciado com a primeira linha sobre o rastilho e a bomba: "Esperemos que a Europa consiga travar esta nova forma de terrorismo (...)". De facto, quem chama a estas insurreições uma "nova forma de terrorismo" passou ao lado da realidade dos últimos dez anos. Infelizmente, a frase vinha só no fim. De outra maneira, eu teria poupado cinco minutos da minha vida - e vós, cinco minutos da vossa.
O excessivo uso retórico da expressãu «politicamente correcto» também me aborrece. Já foi tão longe que hoje se tornou grotesca. Também já escrevi sobre isso: http://esquerda-republicana.blogspot.com/2005/07/o-politicamente-correcto-nunca-existiu_05.html
Sobre o "Politicamente Correcto" escrevi em tempos:
"Politicamente correcto" é, desde que Pacheco Pereira assim o definiu também em Portugal, o palavrão que denomina a reprodução acéfala da ideologia dominante, a observância - e exigência de observância - do seu código de conduta, por nenhuma razão melhor do que o conformismo. Mas a acusação de "politicamente correcto" passou entretanto a ser a arma predilecta e de uso mais fácil para quem defende uma posição minoritária - ou até maioritária mas divergente da ideologia dominante - e que quer contra-atacar sem se dar ao trabalho de desenvolver uma argumentação no conteúdo. Ignora-se deliberadamente - ou pior: inconscientemente -, que o depreciativo no termo só pode advir da estupidez, da origem preguiçosa, cobarde e conformista da posição atacada, e não do facto de ela ser dominante, o que confere à acusação do "políticamente correcto" as características principais daquilo que ela pretende flagelar.
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