ORIENTAÇÃO SEXUAL E CRIME: O Blasfémias publicou, pela pena de João Miranda, Carlos Abreu Amorim e Carlos Loureiro, três posts interessantes sobre a política estadual em relação à orientação sexual. Em primeiro lugar - e esta nota vale, conjuntamente, para os textos de JM e CL -, é para mim algo surpreendente que, perante uma proibição estadual controversa, seja ela qual for, uma análise liberal do problema se dedique imediatamente à crítica da crítica (do TC) à proibição, em vez de começar por examinar a validade substancial da própria proibição, honrando a premissa segundo a qual toda a restrição estadual-legal da liberdade individual tem de ser justificada. Por outro lado, acho que nada há a objectar à opinião de CAA, que põe as coisas no plano do gosto pessoal, quando afirma que lhe "repugnam os homossexuais fanfarrões" (suponho que esta frase condense, razoavelmente, o teor geral do texto; há um pequeno ponto sobre diferença e reivindicação de igualdade de direitos que poderia ser discutido, mas ficará para outra vez). Se alguém disser que acha repugnantes os heterossexuais fanfarrões, as manifestações de desagravo a este ou àquele político, a massa associativa de certo clube, etc., não vem mal algum ao mundo e a coisa fica mesmo pelo gosto pessoal. Carlos Loureiro chama a atenção para um ponto importante: o art. 175º do CP não se refere "aos homossexuais", mas sim aos "actos homossexuais", que também podem ser praticados por heterossexuais. E daí, faz ainda mais sentido o título do post "O que é um homossexual?", porque quem estuda os problemas do "género" e da sexualidade humana há já muito que abandonou a ideia de que a orientação sexual é um dado, ontologicamente fixado; como se sabe, a sexualidade humana é vista hoje como performativa, como uma realidade que o sujeito vai construindo no tempo. Mas, precisamente por isso, o argumento de CL prova demais: se o homossexual e o heterossexual não existem enquanto entes, a proibição de discriminação em função da orientação sexual só pode referir-se aos actos que a exprimem, sob pena de ser uma proibição vazia. Daí que tenha forçosamente de concluir-se que não deixa de haver tratamento discriminatório da orientação sexual pelo facto de a lei se referir a actos e não a pessoas ou grupo de pessoas. Esta conclusão, em si mesma, nada nos diz sobre o carácter permitido ou proibido da discriminação, nem, portanto, sobre uma eventual violação do princípio da igualdade. A resposta a este problema está longe de ser unívoca e, como em tantas outras coisas, não há aqui certo e errado. Porém, parece-me que pode ver-se no art. 175º do CP uma possível violação do art. 13º, nº 2, se tomarmos o princípio da igualdade não apenas como fonte de direitos fundamentais, mas na sua dimensão objectiva, estruturante das políticas estaduais, que não poderão, portanto, estabelecer diferenças arbitrárias com base na orientação sexual, sobretudo quando ela se expressa através dos actos que lhe estão mais obviamente ligados. Tudo o que atira o problema para a questão de saber se existe aí (nos actos homossexuais e nos actos heterossexuais com menores de 14-16 anos), ou não, uma diferença material que justifique uma diferença de tratamento legal, sem violação do princípio da igualdade. E essa discussão não é de índole jurídica, mas sim cultural, psicológica, social - em suma, política. Enfim, no que diz respeito ao post de João Miranda: nem sempre é possível reduzir, com o poder de síntese a que nos habituou, um problema complexo à sua expressão mais simples sem cair no simplismo. No caso hipotético que põe, João Miranda parece querer que o Tribunal avalie a conformidade constitucional de uma norma, não através dos critérios a que está obrigado, mas em função dos seus previsíveis efeitos (a libertação de um "violador"). Esta perspectiva parece-me errónea, por duas razões. Em primeiro lugar, porque colide, obviamente, com as regras do método de controlo da validade constitucional das normas: o TC não pode pensar as suas decisões a partir dos resultados a que previsivelmente elas levarão. Em segundo lugar, porque encerra um sofisma, desenvolvido aliás por JM nos comentários que foi tecendo ao seu próprio post: a qualificação de alguém como "criminoso" (como "violador", no caso que pôs) ou "vítima" é sempre o resultado do preenchimento de uma norma penal válida, e não um prius relativamente a essa norma. Perante uma norma constitucionalmente inválida, não há "criminoso" nem "vítima", não se podendo por isso afirmar que certa decisão protege os "criminosos" à custa dos direitos das "vítimas".
Este post está, infelizmente, pejado de imprecisões e pequenas "confusões". O que é tanto mais surpreendente quanto se referem a questões tratadas na literatura nacional, que PC, penalista conceituado, tinha obrigação de conhecer, e quanto elas tais "imprecisões" afectam inevitavelmente a sua clarividência:
1.º) Há alguma "restrição estadual-legal da liberdade individual" na punição de quem comete um acto sexual com um menor, como, por ex., o violador que sodomiza um bébé (cf. o capítulo 15 do livro de António Araújo, "Crimes sexuais contra menores", intitulado "A liberdade totalitária: o direito fundamental de sodomizar bébés")? Para resposta, transcrevem-se os seguintes dois parágrafos da ob. cit., pp. 174-5:
"Pode relembrar-se ainda o caso de Tshepang, a bébé sul-africama de 9 meses que em finais de 2001 foi brutalmente sodomizada por um ex-namorado da mãe, David Potse, de 23 anos. A bébé sobreviveu após uma intervenção cirúrgica de várias horas, após a qual o médico operador se declarou 'horrorizado', dizendo que gravidade das lesões era tal que o corpo de Tshepang perdera a própria configuração anatómica normal. O agressor seria condenado a prisão perpétua. Segundo o critério da 1.ª Secção do Tribunal Constitucional da República Portuguesa, David Potse tinha o direito de sodomizar a bébé Tshepang - um direito fundamental à expressão da sua sexualidade, garantido ao abrigo da norma constitucional que reconhece aos cidadãos o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Para desenvolver a sua personalidade, David Potse possuía o direito de se relacionar sexualmente com uma criança de 9 meses. Apenas não podia exercer esse direito porque a ele se opunha um outro, de valor superior: o direito da bébé a não ser sodomizada por um adulto de 23 anos. Se o leitor ficou impressionado com estes exemplos, saiba que, de acordo com a lógica adoptada pelo Tribunal Constitucional, eles correspondem, da parte do agente do crime, ao exercício de um direito fundamental à expressão da sexualidade, corolário do princípio da dignidade humana e dos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrados nos artigos 1.º e 26.º da Constituição. 'Às pessoas que fizeram isto não se consegue dar-lhes nem rosto nem voz nem olhar. Não pensamos: quem são? Pensamos: o que é isto?' - interrogava-se Marguerite Duras. Com o apoio do Acórdão n.º 247/05, é possível dar a resposta: 'isto' é o exercício de um direito fundamental, garantido pela Constituição da República Portuguesa"...
2.º) A qualificação da orientação sexual não é idêntica à qualificação do acto sexual, pelo que não há no art. 13.º, n.º 2, parte final, qualquer "proibição vazia"; é apenas toda a distinção entre acto e tendência, predisposição, gosto, em suma, "orientação", que escapa a essa equiparação.
3.º) A "dimensão objectiva" dos direitos fundamentais apoia efectivamente a conclusão de que "pode ver-se no art. 175.º do CP uma possível violação do art. 13.º, n.º 2" da CRP... mas apenas porque tal "possível" conclusão é apoiada por qualquer premissa (ou antes, não necessita sequer de ser apoiada...). Deixando, porém, de lado o lapso linguístico, ou a excessiva adjectivação, a verdade é que a dita "dimensão objectiva" nada adianta quanto ao problema substancial (como, aliás, pouco adianta, quanto à questão material, a "subjectivação" a favor dos beneficiários, porque eventualmente atingidos, com uma proibição de incriminação). A questão é antes, como PC diz, saber se existe nos actos homossexuais e nos actos heterossexuais com menores de 14-16 anos, ou não, uma (aqui, sim, da perspectiva do legislador, "possível") "diferença material que justifique uma diferença de tratamento legal", numa discussão que não é de índole jurídica, "mas sim cultural, psicológica, social" (que, aliás, passou totalmente ao lado do acórdão do TC, pois nem sequer aflora nele, ao contrário do que tem acontecido noutras decisões do mesmo órgão...).
4.º) A recondução da qualificação como "criminoso" ao preenchimento de um tipo é válida no plano dogmático-penal. No plano político-criminal, o conceito de "criminoso", ou "violador", que interessa não é, evidentemente, o que resulta da tipicidade (o problema é o da definição da tipicidade), e sim, justamente, um conceito político-criminal. Não fui ler todos os outros "posts" citados. Mas era com certeza este último conceito que estava aí em causa.
Um leitor assíduo e dedicado, que apenas não assina porque não pode assinar.
O corajoso anónimo que escreveu o comentário precedente (não quero nem imaginar as razões por que não pode assinar), posto que culto, mostra que terá lido depressa demais o meu post, ou o livro de António Araújo, ou ambos. Quero, antes do resto, esclarecer o anónimo que não escrevo no Mar Salgado como profissional. Escrevo apenas opinião. Num artigo científico, não poderia descurar a recentíssima obra de A. Araújo, cuja existência conheço, mas que não li. Aqui, posso. Quanto ao ponto 1º, não posso responder aqui à magna questão de saber se existe uma liberdade primordial (pré-constitucional, ou mesmo apenas pré-legal) de matar, que encontra os seus limites imanentes na protecção (constitucional ou legal) da vida alheia - até porque não tenho uma resposta. O nosso anónimo, que aparenta dominar bem o direito constitucional, poderá fazê-lo com profundidade (e, já agora, com outra elevação), iluminando-nos proficientemente sobre a querela jusnaturalismo / voluntarismo. Por que não, até, fazer um blogue sobre isso? Quanto ao ponto 2º, discordo; continuo a achar claro que a orientação sexual compreende os actos na qual ela se expressa de forma mais imediata. Não se pode garantir, por um lado e por exemplo, a liberdade de iniciativa privada - e proibir, por outro, a criação de empresas. O ponto 3º limita-se a dizer o mesmo que o meu texto - embora, na minha opinião, de forma mais confusa. Quanto ao ponto 4º, cito: "No plano político-criminal, o conceito de "criminoso", ou "violador", que interessa não é, evidentemente, o que resulta da tipicidade (o problema é o da definição da tipicidade), e sim, justamente, um conceito político-criminal". Desconheço o que seja um "conceito político-criminal de criminoso". E o nosso anónimo, limitando-se à redundância, perdeu uma oportunidade de me esclarecer (a propósito, talvez o ajude ler os posts que cito no texto). Agradecendo a chamada de atenção para a repetição "pode... possível", cumprimento-o pelo estilo claro e preciso do seu comentário, quase tão claro e preciso como as ideias que contém.
Lamento que se tenha abespinhado com a minha crítica. De todo o modo, mantendo a condição de cordial dialogante, aqui vai:
1.º) Retiro a referência ao desconhecimento de literatura sobre o tema, que, aliás, não era mais do que uma pequena provocação introdutória da transcrição.
2.º) Não posso, pelo menos por falta de tempo, iluminá-lo proficientemente sobre a querela jusnaturalismo / voluntarismo, nem sequer fazer um blogue sobre isso; nem queria um tratado de filosofia do direito em resposta à questão; limito-me a alertar para algumas "pressuposições não tematizadas" de certo discurso, que foi aquele que esteve subjacente ao referido acórdão do TC e foi muito justamente criticado no livro citado.
3.º) Lamento a confusão que provoquei com o ponto 3.º, mas mantenho a afirmação de que a dita "dimensão objectiva" é um mero passo argumentativo, devendo antes discutir-se a substância do problema (e depois, se necessário, enquadrar a solução assim).
4.º) O dito "conceito político-criminal" de criminoso não é o do "crime em si", nem consta do Código Penal. Regressando à redundância (por vezes também iluminadora), dir-se-á (embora receando não chegar ao "standard" de clareza que PC exigirá) que a noção político-criminal de crime (e de criminoso) é aquela que os "políticos criminais", quando pensam na sua política criminal, têm politico-criminalmente em mente, para depois formularem propostas de política criminal. Terá ficado mais claro?
5.º) Reconheço que terei feito mal em não ler os "posts" citados, e, depois de os ler, até em ter pegado nessas "deixas" (muito deixas) para comentar um comentário de especialista.
Do admirador e leitor atento (que, creia, apenas não assina, não por falta de coragem, mas porque realmente não pode assinar),
Caro Por Mão Própria, singela nota para lhe dizer que não me abespinhei. Abespinho-me por saber que o rival de Ricardo nas redes da Selecção dá pelo nome de Quim. Abespinho-me quando estou fechado num elevador e tenho que ouvir a Barbra Streisand. Nas outras coisas, não me abespinho. Com facilidade.
A sua pseudo-novela transpira superioridade civilizacional sobre a Roménia e os romenos, os atrasados "do campo" - que herdam cinco alqueires de trigo, duas vacas, uma vara de porcos e meio arrátel de grão de bico -, e as "auxiliares de educação", ou as mulheres em geral (vê-se que preferia um homem).
Não tenho nada contra.
Mas tenho de dizer-lhe que, em minha opinião, se alguma das intervenientes era menor, o Presidente do Conselho Directivo fez muito bem em comunicar a situação aos encarregados de educação.
Nota-se que o teor da resposta confirma inteiramente a suspeita de superioridade cultural, intelectual, civilizacional, etc., do autor (agora estendendo-se também sobre os cinéfilos do Kansas).
Mar de opinioes, ideias e comentarios. Para marinheiros e estivadores, sereias e outras musas, tubaroes e demais peixe graudo, carapaus de corrida e todos os errantes navegantes.