OS MORDOMOS E OS SEUS ALIBIS*: Já está completamente instalada a ideia de que os "motins" ocorridos em França se devem à "imigração" e ao "multiculturalismo": é assim que se apresenta um programa de TV, é assim que reza o editorial da Única desta semana (que merece um post separado). Repare-se: não como opinião, mas como facto. Daí, já se conclui que as convulsões sociais (de que os motins são, assegura-se, apenas o começo) se devem ao estrangeiro (agora, o não-europeu), que não respeita o contrato social; nem poderia, aliás, fazê-lo - explica-se -, porque não o celebrou. Com efeito, a Europa sempre se caracterizou por ser um continente particularmente pacífico, no plano externo e interno, antes da vinda dos africanos e dos asiáticos. Um continente sempre contido no seu espaço geográfico, que nunca teve ambições expansionistas. E, sobretudo, um continente sempre amoroso da paz interna. A história está é mal estudada. Por falta de rigor, ainda não se identificou a ligação africana das jacqueries, a influência iraniana sobre Carlos I, o dedo magrebino na revolução francesa, o papel dos turcos na guerra civil espanhola. Mas lá chegaremos. Tantos séculos de paz, sossego e respeito pelo próximo antes dos imigrantes. A realidade é uma matéria fascinante, por infinitamente maleável. *Apesar de começar por "al", alibi é uma palavra latina e significa, literalmente, não estar ali.
Sim, talvez o multiculturalismo, seja lá o que isso for para os jornalistas e outros mortais, não passe de uma explicação apressada. Mas, então, qual é a explicação lenta?
Caro Pedro: pergunta muito bem. Em primeiro lugar, talvez não haja uma explicação (no sentido causal, determinista, que me parece implícito na sua pergunta) acessível aos mortais. Em segundo lugar, mesmo que essa explicação exista, talvez só possa ser formulada, como tantas vezes acontece, daqui a algum tempo, por quem estuda estas coisas, num momento em que já não terá utilidade imediata - é a tal explicação lenta. Em terceiro lugar, o meu problema não são as explicações apressadas: são as explicações apressadas perigosas. Se eu achar que as convulsões sociais em França se devem a radiações emitidas por naves alienígenas, é uma explicação apressada e inofensiva. Mas se eu as apresentar como efeito da existência, nesse território, de certas comunidades étnicas ou religiosas, sem as quais viveríamos em paz, é uma explicação apressada e perigosa. Foi sempre perigosa. Não?
Cncordo que há algo que não bate certo na explicação multiculturalista, como se está a ver pelo alastar do fenómeno a paragens muito diferentes. Talvez a eterna questão geracional, por exemplo, deva ser recuperada. Mas também me parece que é muito redutor ver a explicação muiticulturalista como "perigosa" (para quem? para os gangs juvenis?),ou que tudo seja apenas um mero assunto de "representações" em que um ou os dois lados da barricada escolhem o lado oposto para exorcizar os seus fantasmas da tal mudança acelerada.
Perigosa para quem?! Para as comunidades sobre quem se lança o estigma, naturalmente, e, a prazo, para todos os que convivem com elas. E não percebi por que é que é "redutor" ver a explicação "multiculturalista" como perigosa. Seria redutor ver o problema dos motins exclusivamente através do perigo que essa explicação traz; mas eu escrevi apenas sobre o problema da explicação, não sobre o problema que a explicação tenta explicar.
Geertz , analisando a coabitação javanesa nos anos 50 entre os 3 grupos que referi, é da opinião que um factor de tensão dessa coabitação reside no facto de um dos grupos poder ser considerado responsável pelas dificuldades num particular momento de transformação social.
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