ÇÃO VALENTINO:Lembras-te?... Parece que foi ontem mas foi num dia como o de hoje. Há quê?... Dez, doze, treze anos? Já não sei...
Sei que tinhas vindo ao Porto. Compras, livros, família - qualquer coisa -, e que me telefonaste. Esqueci tudo, larguei logo o computador e desci à Foz, apressadamente, onde aperitivámos, conversando alegremente numa esplanada da praia até gelar os dedos nos copos e o corpo nas cadeiras.
Levei-te a um recatado e pequenino restaurante, na rua de Gondarém (que saudades!...), e imaginava já que te animava e eram favas contadas. Bebericámos um branco, do Alentejo, enquanto escolhíamos. Desliguei o telefone móvel (era dos primeiros, tu nem tinhas!...) para não sermos incomodados.
Pediste a minha opinião, enquanto pedias também mais foie-gras e outra cestinha de pão, igualmente alentejano. Sugeri o camembert com doce de framboesas, que repetimos depois, com outra Cartuxa e mais foie-gras, enquanto esperávamos a sopa seca e que o tinto recuperasse a respiração.
O restaurante estava lindo: parecia ter faltado a luz e entretidas velas nas mesinhas cuidadas iluminavam cuidadosamente os velados casalinhos, casalinhos entretidos que nos miravam boquiabertos e sussurrantes. Nós não. Nós não ligávamos a ninguém e transbordávamos da alegria natural do reencontro. E falávamos alto, muito e animadamente. E brindávamos ao passado, ao presente e ao futuro com cada uma das Redomas que pedimos. E quando a sopa seca finalmente secou (sempre não foi mal pensado pedir as duas doses, não te dizia?...), foi-nos gentilmente ofertado um pouco de cabidela (aquela cabidela! Lembras-te do seu suave sabor?...) enquanto esperávamos a sobremesa. Éramos o centro das atenções! O Carlos Rocha, tal como os outros, olhava-nos surpreendido, e principalmente a mim, que me conhecia de há muito como cliente regular.
Foste tu quem primeiro percebeu tudo, já depois da sobremesa, já depois dos vintage, já no segundo red label, já no terceiro café, quando finalmente olhaste em volta: era o dia fatal!... Olhaste-me nos olhos, pegaste-me delicadamente na mão e sorriste, desfrutando completamente o momento de sentires que eu tinha todos os olhos sobre mim. Retirei-a espantado, mesmo envergonhado. E foi aí que percebi tudo, também. Tudo o que os teus olhos gozosos e os outros, que estupefactos nos fitavam, me diziam: era o dia dos namorados e nós estávamos ali numa algazarra marialva total. Lembras-te?... Lembras-te, Pedro Caeiro? Que cardina das antigas! Se fosse hoje estaríamos uma semana a canjas de galinha!...
O resto é história. Tinha tantas chamadas não atendidas no telemóvel que o atirei ao mar para não mentir quando disse que o perdera. Tal era o tamanho que na altura tinham os aparelhos que se afundou num ápice. Lembro-me ainda de que fui miseravelmente para casa, perseguindo os velhinhos trilhos de eléctrico da Brito Capelo, com a mão esquerda no olho direito e o olho esquerdo no trilho da direita. Tu foste ressonando mansamente para a da tua Avó, com aquele malvado taxista que, contaste-me mais tarde, esteve dez minutos a acordar-te brutalmente só porque tinha chegado ao destino e queria ser pago e ir embora. O amigo Carlos Rocha acabou por perceber que não éramos maricas e ainda nos rimos muito desse mal-entendido que tinha acontecido. Infelizmente passou o Favas Contadas e nunca mais se atacou a belíssima sopa seca ou a maravilhosa cabidela que ali se fazia.
Não sei se tens alguma coisa contra o homem da OPA. Imagino que não... Mas calhava bem se te guardassem uma coluna lá no jornal dele. Isto merecia consagração semanal!!! Sabe bem tanta e tão genuína qualidade, feita da simplicidade cristalina com que se chega às coisas verdadeiramente boas. COLUNA, PRECISA-SE (A "Atlântico" não faz o género. Destes textos, entenda-se...)
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