OUTRO RETRATO: Não tiro uma fotografia magro desde os oito anos, por isso escrevo. Entre-se em Seia, vindo de Nelas. Atravesse-se a povoação, passando-se pela rotunda da Galp - mas comprem-se entretanto dois trenós para gáudio da criançada - e tome-se lentamente a direcção da Torre. Sim, a Torre. Percorram-se mansamente uns quilómetros por aquela ziguezagueante estrada, atrás de uns passeantes cumpridores duma imaginária velocidade máxima de 20 kms/h e engolindo os fumos dos escapes de diversas camionetas de passageiros adquiridas já em período de reforma a um qualquer país europeu. Uns quilómetros depois, parados, desligue-se o carro e prepare-se a paciência, depois de se ter sulcado vagarosamente uma estrada picada de valas traiçoeiras. Passem-se dez, quinze, vinte vagarosos minutos mirando diversos grupos de três homens manjando dos tachos já frios, ou fumando e conversando à soleira da porta do automóvel que estacionaram na berma da estrada, em plena estrada, no meio da estrada, porque não existem parques de estacionamento, impedindo a circulação automóvel civilizada. Pastam, com os seus minúsculos cães irritantes vestidinhos de colete de lã, gozando o sol junto à neve já não sei bem a que horas do dia. Mas não são mansos e revoltam-se quando alguém sai do carro e lhes pede que desimpeçam a estrada, que permitam a passagem dos outros carros. O dia está frio e brilhante mas eu queria estar em casa. À minha direita, a muito menos de trezentos metros, num largo prado junto à serra, quase trezentas mil pessoas castanhas e lanhosas se acotovelam como focas preguiçosas em dia de sol quente, embrulhadas em sacos de plástico que utilizam também para escorregar pela neve. Toda a gente é sorridente, atira palavrões amigáveis e cheira deliciosamente a queijo podre. Uns arrebentam as pobres narinas com as pontas dos dedos sujos de doce ou de leite achocolatado; dezenas de gordas amareladas descansam alegremente nos braços abertos dos seus rapazes, dentro dos seus carros, de portas também abertas, numa temperatura um pouco descontrolada, provavelmente curando-se da malfadada semana de trabalho.
Tudo o resto é português: há lixo espalhado pela serra, desde triciclos partidos até bidões ferrugentos. Os homens levantam-se, arrotando e palitando os dentes, mas não vão recolher os detritos que plantaram nem desimpedir a estrada que estrangularam com o estacionamento selvagem.
"Não há guardas?", pergunta o viajante mais novo: "Há, há, mas estão noutra, vêem os quatro rodas mal parados e ficam de quatro patas", responde alguém.
E o que segue é história: a feliz meninice divertiu-se finalmente um bocado, dando lucro ao dia. Não se vislumbrou um local aprazível para merendar, foi impossível encontrar alguém minimamente solícito que conseguisse partir finamente uma fatiazinha de presunto e não vi o Filipe Nunes Vicente. Que pena, Filipe. É que é um sítio onde nunca mais na vida - aqui o garanto - nos poderemos cruzar!
Caro Vasco, eheheheh...gostei imenso; mas a parte final, talvez efeito do prolongamento do SLBxNacional a seguir a nove horas de consulta (consecutivas, que não sou funcionário público), é que não apanhei completamente. um abraço, Filipe
Só isto, meu querido: se soubesse que por ali andavas e se te tivesse encontrado, maior lucro teria tido o meu dia e sempre seríamos dois a procurar fatias finas de presunto (aumentaria as hipóteses de sucesso). Seja como for, naquela Serra da Estrela nunca mais nos poderemos encontrar porque nunca mais lá porei os pés. Há vinte anos que não o fazia e não conto voltar a fazê-lo.
Belo post! Pke todos fizémos já a mesma promessa, cumprida a formalidade (prole, a quanto obrigas!). E pela força expressiva, pelo português escorreito e desenxovalhado, pela autenticidade e ausência de barroquismos. Um texto às direitas... Já não se lê muita coisa assim, God help us!
Vasco: vou lá de três em três anos ( há outros sítios para queijo, embora a Quinta do Tinte/S.Gião que descrevi seja muito boa ( fornece o Corte Inglés) porque tiro uma sexta-feira. Não apanho gente nem confusão. É que eu vou lá pelas crianças,não tenho particular atracção pela neve.
O retrato da Torre está fantástico. Tb estive lá noultimo fim de semana - pelas crianças - mas tenho que confessar que tb me ri e diverti com o trenó. Mas digo-lhe que há muito mais serra da estrela para além da torre e muita que vale a pena.
Bom mesmo é fazer um desvio à vinda e dormir em Sortelha (intra-muros). Ou vir pelo caminho antigo e ficar em Aldeia das Dez. Beira no seu melhor. (Mesmo sem cerejas, porque ainda não é primavera).
Prefiro Sortelha, caro Moon. Está lá um dos melhores e mais simpáticos restaurantes deste país. Agradeço que mo tenha recordado, será uma das próximas surtidas.
Pois é, Sortelha (virá mesmo de sortija?) é mesmo mágica. Um assombro de terra, em pleno "Terreiro das Bruxas"...As casas de turismo rural têm um fueiro de madeira atrás da porta (sg a lenda servem para lutar com os lobisomens que aparecem de noite, brrrr...)e há mesmo qualquer coisa de estranho naquela beleza. Lembro-me que dei por mim a sentir-me bizarra e meia sonâmbula, com uma espécie de "pedra" (sem contudo ter pecado!) Quando cheguei à parte do livro sobre a região, que se referia aos subsolos outrora explorados pela riqueza em rádio...percebi que não era imaginação minha! Afinal tinha mesmo sido uma legitimíssima pedra! - O restaurante será o Alboroque? Ou a fada madrinha local, simpaticíssima e generosíssima senhora (que raça!)- aquela espanhola que a terra teve a sorte de ter por "patrona" - agora também passou dos antiques e do arraiolos para a restauração? Imperdível, de facto, Sortelha!
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