VELHO ORIENTALISMO: Partindo dos textos ( quatro) com que o Pedro Picoito ( www.amãoinvisível.blogspot.com) pretende desmontar a tolerância islâmica e traçar um esboço do "novo orientalismo", algumas notas:
1) Todo o corpo teórico dos estudos pós-coloniais foi organizado em torno do marxismo. Fanon reclamava-se da dialéctica hegeliana-marxista ( é Bhabha que assim o sintetiza), Said ia por Gramsci, e por aí fora. Nada que nos deva espantar. A "luta dos povos colonizados" foi convenientemente lida à luz da perspectiva marxista: uma enorme massa de gente desqualificada e/ou pré-proletarizada, a quem os detentores dos modos de produção negavam o direito de existência social. Os processos de descolonização africanos foram naturalmente gerando regimes marxistas, noutros lugares - América do Sul e Médio Oriente - a coisa indo por outro caminho: a colonização já não como um processo formal, antes uma evolução imperial, liderada pelos EUA. O importante é reconhecer que a perspectiva marxista actualizada pelos arautos da libertação ( já aqui trouxe em tempos, um exemplo passado na Guiné dos anos 70) odiou sempre a burguesia terceiro-mundista. Samir Amin, autor de Classe et Nation em 1979, exemplo acabado desse ódio, classificava as elites emergentes como "vendidos" e simples "apêndices" das outrora dominates elites coloniais. A Índia foi, e é, um espinho cravado na garganta dos Sami deste mundo; tanto quanto a história colonial da Europa, para muitos que desejam que ela nunca tivesse existido.
2) O indeterminismo cultural, a releitura das narrativas imperiais ( de Jane Austen a Kipling, como fez, elegantemente, diga-se, Edward Said), a palavrosa gaveta da "alteridade" e da "re-construção da identidade cultural", foram instrumentos utilizados com um objectivo que o próprio Bhabha define sem ambiguidades: a linguagem da comunidade cultural necessita de ser pensada a partir de uma perspectiva cultural, de um modo semelhante ao que se fez com a linguagem da sexualidade, do self e da comunidade cultural pelas feministas dos anos 70 e pela comunidade gay nos anos 80 ( Bhabha, The Location of Culture, pp251, tradução minha). Ou seja, e como seria inevitável lendo as referências dos autores pós-coloniais, o alvo foi sempre a sociedade ocidental de dominação burguesa, a preferência por Nietzsche aparecendo assim facilmente explicável na transliteração da fórmula de Cícero, se a memória não me atraiçoa: não deverá o filósofo erguer-se acima da gramática? O ponto é enunciado por Said em Orientalismo: a visão que o ocidente tem do oriente é irmã da auto-representação que o ocidente faz de si próprio. O ataque é ao "reino da ficção ideológica", à "crença da tradição ocidental nos seus propósitos". Claro como água.
3) O que não me parece é que seja possível definir um "novo orientalismo" como afirma o Pedro. Os acontecimentos recentes, espectaculares, talvez, mas pouco inovadores, não trazem nada de novo. Um texto, já antigo, de Jayant Lele - Orientalism and the Social Sciences, in Orientalism and the Postcolonial Predicament: perspectives on South Asia, Ed. C.Breckenridge & P. van der Veer, Univ. of Pennsylvania Press, 1993 -, dizia-o inequivocamente: sob condições de crise, as sociedades ocidentais produzem um pensamento auto-reflexivo que mais não faz do que prolongar a "meta-narrativa" que se arroga o direito de traduzir o célebre "Outro". Se, com "novo orientalismo", o Pedro quer significar uma "revisão da tradição islâmica", apresentando-a como essencialmente tolerante e redentora, não há nada de "novo" ou então não há nada de "orientalista". A perspectiva pós-colonial, pura e dura, nega ao ocidente o direito de classificar as outras culturas a partir dos seus próprios padrões. O tal "problema da gramática", que Nietzsche, em Para além do Bem e do Mal, oferece a esta malta: por que motivo o mundo que nos diz respeito não poderá ser uma ficção? (sendo que se tal ficção tiver um autor, também ele é da ordem da própria ficção, lembra-nos o cabeça de dinamite). Talvez que a tentativa do Pedro seja motivada pelo receio de uma nova roupagem para o "terrível Islão". Mas também nós, na boa e velha Europa, temos actualizado e reescrito a nosa "tradição", que engloba coisas tão boas como a liberdade de expressão e coisas tão más como os lager de Primo Levi.
Para breve, algumas notas (embora em desvantagem diante do rigor dos textos do Pedro) sobre a crítica que o Pedro Picoito faz "à suposta" tolerância muçulmana na Península por volta do século X. Não me parece que tenha sido tão "suposta" assim.
Rigoroso, eu? Mas nem sequer citei o Nietzsche... (Eu respondo, a sério, deixa-me só digerir. Até porque parece que o melhor ainda aí vem.) P.S. Aleluia pela reabertura dos comentários! Estava a ver que tinha que iniciar uma microcausa...
estes textos - do Pedro Picoito e os teus são muito interessantes. O único problema é que não constituem crítica. Um falou da Idade Média, o outro da visão moderna pós colonial.
Fico à espera que se encontrem na mesmo momento histórico.
Porque dizer que " a tolerância muçulmana na Península por volta do século X. Não me parece que tenha sido tão "suposta" assim." Não basta. O Claudio Torres ou o Borges Coelho dizem mais e explicam mais e também não chega.
Não sou entendida no assunto e com tolerância ou sem ela importava-me mais saber como transitaram certas formas deocrativas e arquitectónicas... enfim, cada um com as suas preocupações ";O)
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