A SEDE (II): Suportar a infâmia, a dor ou até a sede, desejar o bom nome, a saciedade ou água. A partir daqui, duas grandes linhas de dissensão, segundo Moreau, entre estóicos e cristãos : para os primeiros, a virtude como bem soberano e a condenação das paixões; para os segundos, Deus como bem soberano, a paixão como via de acesso. Agostinho condena o suicídio de Catão porque devemos suportar a desgraça, Séneca elogia-o porque o considera um acto de libertação. Esta é uma contradição célebre: Agostinho parece estóico - atitude fatalista perante a vida -, Séneca parece mole, compreendendo os limites da dor moral. Em que ficamos? O osso da coisa é a autonomia do homem. A doutrina estóica obriga o homem ser capaz de procurar a virtude, dando particular relevo à intenção dos actos e não aos actos propriamente ditos ( ver o Livro I do De beneficiis de Séneca). Esta autonomia mental pode ser o primeiro factor de rebelião contra a ordem cristã: nada está preparado, nem por Deus nem por nós, a nossa sede dependendo menos do seu aplacamento do que da capacidade em a suportar. Petrarca, no diálogo entre a Dor e a Razão (nos De Remediis), tenta fazer a ponte entre a Stoa e a Igreja. Começa por explicar ao sofredor que a virtude estóica é a única coisa que se opõe ao vício, e a dor não é um vício; acaba por por dizer ao desgraçado que Cristo já sofreu por ele, e muito mais do que ele, pelo que as suas dores são desprezíveis. Agostinho, nas Confissões ( XXII, 32), contraria Cícero - o espectador comprometido do estoicismo - a propósito da expressão "vida feliz": ela só existe junto de Deus. Em suma ( passe o ridículo desta expressão num post), para os estóicos depende de nós o domínio da dor e a experiência da virtude, enquanto que para Agostinho tudo depende da nossa proximidade de Deus. O que é curioso, e vemos isso em Petrarca como nos estóicos cristãos pré-modernos, a Providência pode ser identificada com Deus. Assim, diante do Destino, o autodomínio, não por bravata mas pela compreensão da nossa pequenez, pode ser tão cristão como estóico. A nossa sede será por vezes "mais água do que sede" - como em Sebastião da Gama - também porque nada a aplacará se não a dominarmos: pela virtude estóica ou pela fé ( confiança) em Deus.
Filipe, grande post (se a expressão não é ridícula num comentário...). Não vou pegar em todas as questões que levanta, mas apenas na seguinte. O autodomínio perante o sofrimento pode ser tanto estóico como cristão (Nietzche não tinha razão), mas o cristão não se considera por isso "super-homem". Sabe que a sua força - a virtus romana - vem de Deus. E sabe que é um homem porque é uma criatura.
Lembras-te do "If" do Kipling? Um belo poema, cheio de gentlemanship viril por todo o lado - e muito pouco de cristão. Para o Cristianismo, não é por suportar o destino impassivelemnte que "you`ll be a man, my son", mas por reconhecer a nossa fragilidade (a nossa sede) perante o Criador (a água). E mais não digo, se não nunca mais saímos daqui.
És sempre generoso, Pedro. Mas eu vou continuar, até porque já tenho pegado nestas coisas aqui na nau e tenciono continuar a pegar. O meu limite é : como sobreviver? Depois, a partir daqui, uma série de coisas que extravasam a esfera pessoal e recobrem a esfera pública.
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