SÉRIE "OS EUA E O NARCOTRÁFICO" (IV): Continuemos na América do Sul. Na história das drogas - e julgo que noutras - repetem-se movimentos que adquirem um carácter quase circular. O envolvimento norte-americano na repressão ao narcotráfico sul-americano data dos anos 50. O Opium Protocol de 1953, claramente inspirado pelos EUA, foi o que de melhor se arranjou para arrumar a casa depois da guerra. A sua aplicação prática necessitou de muita pedra partida:
1) os estados produtores, como já aqui foi lembrado, multiplicaram-se como cogumelos com a descolonização. 2) Arrastava-se o debate sobre se seria preferível o controlo na origem ou o controlo do mercado .
Seria a Single Convention, assinada em Nova Iorque em 1961 sob a batuta de Robert Curran, a tentar resolver a questão. E o principal ponto foi afastar da agenda do controlo das drogas a restrição à produção agrícola. Se isto poderia ( acabou por não poder...) ter servido para os países envolvidos no comércio do ópio, para a América do Sul foi um Kinder Surpresa: simultaneamente um golpe, uma oportunidade e uma novidade. Um golpe nas pretensões do enfranquecido Anslinger ( que pugnava precisamente pelo controlo da produção agrícola) , uma oportunidade para o crescimento das plantações de coca e uma novidade: os EUA passaram a ocupar-se pessoalmente dos assuntos sul-americanos. Nos anos 50, entretidos com o ópio, os homens do velhinho PCOB ( o Permanent Central Opium Board criado em 1928) assumiam que a América do Sul era um gigante adormecido que poderia voltar a emergir como grande centro mundial de produção. Os EUA tentaram então, a partir do início da década de 60, controlar o Peru e a Bolívia. Os regimes de Belaunde e Barrientos, lançados na cruzada anti-comunista, lançaram também as bases do que viria a ser o problema americano nas décadas seguintes:
1) Zonas de coca cada vez mais longe da acção dos exércitos regulares ( O vale do Huallaga, o Guaviare e Santa Cruz por exemplo) . 2) Desequilíbrio da posse da terra ( em 1980, na Colômbia, 13 milhões de hectares estavam na posse de 8000 famílias, enquanto 800.00 detinham apenas 4,5 milhões), incitandor de revolta e de movimentos de migração interna. 3) Exploração marxista e/ou maoísta destes desequilíbrios, criando o início de uma aliança objectiva entre cocaleros e guerrilheiros .
Nos anos 60, os americanos podiam ter aprendido que quando se limpa um vespeiro as vespas mudam-se para outro. Foi assim do Peru para a Bolívia, poderá vir a ser assim da Colômbia para a Bolívia e (novamente) para o Peru dos nosso dias. As zonas de coca foram quase sempre entregues, de mão beijada, aos traficantes por regimes empenhados na luta contra as guerrihas e partidos marxistas legalizados. Estes regimes, como o Peru de Velasco nos anos 70, muito ajudaram ao estabelecimento das zonas cocaleras e respectivas correias de produção ( extracção do alcalóide) e transporte. Quando o tempo do crack ( anos 80) e o da moda da cocaína sem necessidade de cozinha ( anos 90) chegou, tudo estava pronto. Hoje, na Colômbia, os EUA emendaram alguns erros: apoiam um regime democrático e apostam numa erradicação mais eficaz das plantações de coca. Mas tal pode não chegar dada a mobilidade dos vespeiros ( zonas de produção), das vespas ( os narcotraficantes) e da permanência de focos de miséria que tornam atractiva a actividade cocalera. Depois, a América do Sul andina está em pé de guerra ideológica.
Fontes utilizadas: variadíssimas, mas sobretudo W. McAllister ( 2000) e Paul Gootenberg ( 2004).
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