SÉRIE AFEGÃ (IV): A pouca atenção mediática dada ao território não esconde os problemas. O ópio, como tem acontecido desde ao anos 80, continua a ser o motor das transformações. Analisemos hoje as razões do fracasso dos vários planos de erradicação da cultura do ópio postos em prática desde o início dos anos 90. O primeiro projecto do UNDCP ( United Nations Drug Control Program) foi lançado em 1989. Dinheiro, escolas, hospitais, enfim, a parafernália habitual. Continha, como novidade, a célebre cláusula da papoila : era condição prévia de acesso ao financiamento o fim imediato da cultura de ópio. Ou seja, as populações de Kandahar, Helmand, Kunar e das outras províncias tinham de deixar de produzir ópio antes mesmo de obterem ajuda financeira para... deixar de produzir ópio. Como é óbvio, deu asneira e dupla: não só o plano não funcionou como muitas comunidades rurais passaram a chantagear o UNDCP ( "se não me dão dólares, produzo ainda mais"). Em 1997 um segundo plano arranca. Compreende já fundos destinados ao estabelecimento de unidades policiais anti-droga para além dos normais financiamentos ao fim da produção. O plano, que se estendeu até 2000, acabou dinamitado por diversas razões nem sempre fáceis de descodificar dada a linguagem burocrática deste tipo de agências. Sinteticamente: o terreno era perigoso, o clima político volátil ( nada de imprevisível, mas enfim...) e os lavradores mais ricos obtiveram o acesso privilegiado - e quase exclusivo - aos fundos da ONU. Depois da invasão anglo-americana, o governo de Karzai, a ONU e os militares ocidentais fizeram uma fusão das tentativas anteriores acrescentada de alguma originalidade. Lançaram as ACEO ( Agressive Crop Erradication Operations) e os ALP ( Alternatives Livelihood Programes). O Senlis Council, crítico da actual política de combate ao ópio afegão, alerta para uma evidência que já aqui referi: os habitantes de zonas brutalmente pobres, como Helmand ou Kandahar, já não distinguem as forças de segurança que os libertaram dos talibã das brigadas anti-ópio que lhe querem tirar o sustento. Resultado: a propaganda talibã é alimentada e o ópio floresce, agora num quadro de resistência " cultural". Nos anos 50 o Helmand foi alvo de uma requalificação agrícola e hidro-eléctrica patrocinada pelos dólares americanos. O projecto foi abandonado e, para ajudar à missa, o caudal do rio Helmand passou de 2.221 milhões de m3 em 1991 para apenas 48 milhões em 2001. Numa região destas não espanta que, em 2005, os 26.000 ha de ópio tenham rendido 144 milhões de U$ enquanto que 80.000 ha de trigo tenham gerado apenas 44 milhões de U$. Em Helmand, cerca de 380.000 pessoas vivem das receitas do ópio. A situação está de tal maneira que no mês passado os talibã já faziam checkpoints rodoviários a apenas 20 km da base britânica situada em Lashkar Gah, a capital provincial do Helmand. Na província, os ocidentais e o governo já não controlam os distritos de Musa Qala, Kajaki, Dishu e Naw Zad. Que fazer? Rezar para que as tropas da coligação recuperem o controlo do país ( a bem dizer aquilo são vários países, mas isso será motivo para outro post) e depois não cometer os mesmos erros. Uma das possibilidades é ensaiar a Experiência Turca. Este post já vai longo pelo que essa experiência terá de ser explicada noutra ocasião, mas a ideia, alimentada pelo Senlis Council, tem pernas para andar: significa instalar uma produção controlada de ópio destinada a fins legais/ medicinais como aconteceu na Turquia nos anos 70. Será apenas uma panaceia ( e pequena, ao contrário do que pensa o Senlis Council que mistura tempos e realidades diferentes) , mas ao menos uma panaceia eficaz.
Resumindo: com maior ou menor intervenção militar, com maior ou menor boa vontade e maior ou menor "sentido empresarial" continuamos na calma a pretender resolver problemas em países com os quais nada temos a ver. O resultado parece por demais evidente, mas a única resposta de que a nossa superior civilização ocidental e cristã parece capaz é a fuga para a frente.
É o tal ocidente que consome a heroína produzida a partir do ópio afegão ( 82% do total mundial) . Não nos é portanto indiferente. Quanto a "eles" preferirem que nõs não nos metamos, se está a falar dos warlords, julgo que tem razão.
o problema do ópio é nosso. não é por não nos ser indiferente que vamos desatar a invadir paises e a "resolver" problemas internos com as consequências trágicas que se sabem ( ou se tenta evitar que se saiba). é a nossas policia quem tem de agir de preferência em coordenação com outras polícias congéneres ao nível europeu e não só ( se quiseres pode ser com a agência americana de combate à droga, a Interpol, a scotland yard, o que seja necessário). não são talibans nem warlords quem anda aí pelo casal ventoso a distribuir doses. Nesse caso, sim, teriamos toda a legitimidade para dizer que agentes estrangeiros estavam a imiscuir-se nos nossos assuntos internos. os talibans e os warlords (sobretudo estes, que participaram activamente na "libertação") pelos vistos convivem perfeitamente com a ocupação militar "aliada" que se destina evidentemente a outros fins que não o combate à droga, pelo que não vale o remoque demagógico que sugere que só a malandragem detesta ser bombardeada pelos libertadores/polícias do costume.
Tens duplamente razão: o problema do ópio é ( quase só) nosso e não podemos invadir por causa disso. Aliás nunca o fizemos. A questão é outra. Uma vez lá ( mal ou bem), devemos fazer alguma coisa? O que tenho pregado aqui ( em várias séries de posts) é que as intervenções têm sido mal conduzidas, portanto estamos de acordo nesse ponto. A cultura da papoila no Afeganistão foi induzida, em grande parte, pelo ocidente ( é uma longa história) e por isso temos a obrigação de a tentar resolver. Para além disso existe um outro aspecto, pouco falado: a enorme quantidade de heroinómanos que existe no Paquistão, Irão e mesmo no Afeganistão. Julgo que voltaremos a falar sobre isto.
Talvez eu devesse ter sido mais preciso. O problema do "nosso" ópio é nosso. Na realidade não "invadimos" ( usemos aqui do plural para facilitar) exactamente por causa disso, mas fez parte da "nossa" artilharia da última invasão, o argumento de que era (também)para resolver esse problema. Certamente que é trágico que os camponeses paquistaneses e afegãos tenham de se virar para a cultura da papoila para sobreviver, assim como é trágica a realidade da toxicodependência nos países do terceiro mundo. Como resolver? Eu não sei. Tu sabes? Suponho que não. Os nossos lideres, de certeza que também não. Somos nós ou os nossos lideres quem tem o direito de tomar decisões a serem efectivadas "lá"? Suponho que, a única forma de minimizar esse problema é atacar o problema "cá", não pode ser pretexto para mais ingerências. Ainda quanto aos warlords...como sabes é rapaziada que já cá(lá, felizmente) anda há décadas, na sua maioria, tiveram até em tempos direito a tratamento mediático de heróis românticos e suscitaram paixões de palhaços como o Bernard Henry Levy e outros ainda mais insuspeitos, não é agora com certeza que vamos incomodar-nos com tráficos que eles sempre fizeram. Pois se mal ou bem, esses países até têm governos mais ou menos legítimos quando se trata de darem autorizações para ocupações militares...
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