"A DÚVIDA, ESSA NOSSA MODERNA COROA DE ESPINHOS": A frase é de T.E. Lawrence mas podia bem ter sido dita por Primo Levi na altura da invasão israelita do sul do Líbano em 1982. Levi assinou então, juntamente com outros democratas ( e outros menos democratas) italianos, uma petição exigindo a demissão de Begin e a retirada de Israel do Líbano. A dúvida que incomodava Levi prendia-se com a perda do capital de simpatia junto dos judeus da diáspora que a política gressiva de Israel causava. Falava-se então do ressurgimento do anti-semitismo * na Europa. E Levi falou bastante: entrevistas ao La Repubblica, ao Oggi e ao Panorama ( todas em Junho de 1982), ao L'Espresso ( Setembro de 1984) , ao Corriere Medico ( Setembro de 1982), entre outras. Levi assumiu nessa altura uma clara condenação daquio que designou como "o militarismo de Israel". Considerava-o nocivo à causa do judaísmo internacional, mas também a um outro aspecto mais profundo: "Se nós somos democratas, devemos ser democratas primeiro e só depois italianos ou judeus ou outra coisa qualquer" ( Panorama, 5 de Julho de 1982). Levi fascinou-se, na sua viagem a Israel nos anos 60, com "o espírito igualitário e tolstoiano dos kibboutzim, com a imagem de um país socialista e campesino" ( Resistenza, Giustizia e Libertá, nº 4, Abril de 1968). O militarismo de Begin e Sharon, na opinião de Levi, fazia Israel correr o perigo de enfraquecer a "forte consciência democrática da nação israelita" ( idem) . No entanto, e declarando-se sempre como não-sionista, Levi classificava a fundação do moderno Israel como "um acontecimento absolutamente histórico de extrema importância para os judeus do mundo inteiro" ( The Jerusalem Post, 29 de Novembro de 1986). A bota não batia com a perdigota. Nas entrevistas marcadas pela invasão do Líbano, sobretudo nas publicadas no La Republica e no L' Espresso, a dúvida alia-se à bota (desavinda da perdigota): como defender Israel sem defender as guerras israelitas? Levi ultrapassa o promontório escudando-se num farol: "o melhor da cultura judaica sobrevive fora de Israel, é a cultura da Diáspora, dispersa e policêntrica." ( L'Espresso, Setembro de 1984). Compreendo bem a dúvida de Levi, que Lévinas sintetizou em tempos (Difficile Liberté, 1963) : "Israel não se tornou pior do que o resto dos países do mundo em que insere; porém, é inegável que deixou de ser o melhor". Em Levi, esta visão de dois judaísmos - o da Diáspora e o de Israel - é marcada pela agressividade territorial. Não é a minha guitarra, não tenho unhas para tal. Interessa-me o papel que Israel desempenha hoje mais do que ontem: um modelo de sociedade ocidental, livre e plural, numa zona marcada pela tentativa de homogeneização islâmica. A questão é saber se a "militarização" de que falava Levi é favorável às pretensões fundamentalistas islâmicas. Outra dúvida é saber se Israel pode sobreviver sem lutar e por que motivo "tem de ser o melhor". Outra ainda é saber se de alguma forma os Ocidentes podem tirar conclusões válidas a partir da postura israelita. Coroas de espinhos...
* Já dei para o peditório dos que julgam ter descoberto a pólvora: o termo é usado há muito, e em toda a parte, apenas na versão judaica do semitismo. O resto é conversa habilidosa que pode ser analisada noutra ocasião.
Dúvidas que partilho apesar de rodeado por tanta convicção (inclusive de amigos que reagem mal à perplexidade). Também me parece que Israel não é nem poderá «ser o melhor» - por muito que na confortável Europa gostássemos que fosse. Parabéns por mais um excelente postal.
Várias coisas, para termos algumas evidências em comum de modo a podermos pensar que estamos a falar da mesma coisa, até porque o chavão das "nossas sociedades plurais" já dói. Do que falamos quando falamos num modelo de sociedade ocidental, livre e plural: de um regime politico de democracia representativa que funcione para os que moram em Israel (um enorme condominio fechado) mas que não tem pejo em destruir os traços de democratização dos países em torno dele se isso puder ser configurado numa qualquer deriva securitária? É que as nossas democracias FNV caracterizam-se por uma forma diferente de reagir em relação ao incremento da paz e à realização de actos de guerra, e essa diferença parece ser suficientemente importante para impor uma destrinça conceptual desse tal modelo ocidental de que fala. Ao contrário de si eu propunha que o debate se centrasse na impossibilidade de, mesmo adoptando um regime de natureza representativa, Israel poder realizar algumas condições básicas daquilo que entendemos ser um regime democrático (quer na promoção da paz quer na promoção das democracias no mundo). Se formos por aí talvez ainda cheguemos a tempo de descobrir que afinal não somos tão parecidos com os israelitas (árabes ou judeus) nem tão diferentes dos árabes (excepto na nossa tão aversão à álgebra, o que de certa forma talvez explique a forma divergente como assumimos a contagem dos mortos ) e que não há razões nenhumas para assumirmos como um dado adquirido de que eles não se podem entender. Até porque quando falamos de Israel estamos a falar de árabes. Tal como naqueles países em que cada um é de onde está enterrada a sua placenta, também os israelitas escolheram viver e fazer nascer os seus filhos em Israel e Israel é um país árabe. Por outro lado, não é uma zona marcada pela tentativa de homogeneização islâmica. Nós vêmo-la assim e á força de tanto a vermos assim estamos a ter progressos significativos em conseguir que assim seja (olhe, outra vez o malfadado trabalho dos modelos ocidentais) mas não é isso que realmente se passa. É tão marcada por isso como pela tentativa de europeização dos países. Ou pela manutenção de uma elite de nababos que manda os seus filhos estudar em harvard e yale e que por isso está em condições previligiadas para negociar com os interesses petroliferos actuantes na zona. depende para onde olhamos, FNV. E ainda, se a pergunta é, pode Israel sobreviver sem ser um foco de crispação, sem manchar a sua necessidade de sobreviver enquanto estado com o massacrar lento, reiterado, inesperado dos seus vizinhos, acha mesmo que isto é uma pergunta? Uma pergunta para um estado que seja um modelo ocidental, plural e livre?
São muitas as lebres que levanta, utilizarei para já duas: a sua referência a Israel como um país árabe e a sua recusa em admitir que existe hoje ume tentativa de homogeneização fundamentalista na região ( e não só, mas isso são outras contas). A primeira fez-me lembrar partes do Levi que utilizei: ele fala disso e a certa altura afirma ( porquê?) a necessidade de constituir o fulcro da cultura judaica fora de Israel. A segunda lebre é maior e só pode ser partida aos pedaços. Julgo que sim, que existe uma pressão grande para homogeneizar politica e culturalmente. Viajo bastante no mundo islâmico ( on-line...) e muita gente o diz (não sou só eu e outros patetas). Fique por cá que vai gostar de alguns autores que trarei ao Mar Salgado ( um vai já sair).
Caro FNV, Enquanto vou esperando os autores, uma ressalva: eu não me recusei a admitir que "existe hoje ume tentativa de homogeneização fundamentalista na região". Muito do que temos vindo aqui a discutir perderia sentido se grande parte do dilema não fosse entre aqueles que pensam que isso é o traço identificador e aqueles que pensam que não é (sem recusarem admitir a sua importância). Até referi que ela é tão marcada por isso ( é evidente que não andei a medir o que marca mais ou menos, é uma figura de estilo que tendia a relativizar a forma como no seu texto essa marca aparecia com uma dimensão exagerada)como outros factores.
Caro JPN, Um deles ( dos autores já saiu ontem). Esse ponto - o da homogeneização - valerá mais discussão lá para a frente. A literatura é um bom observatório e até nesse ponto nos ensina mais do que julgamos ( as coisas não estão assim tão fáceis para os uniformizadores).
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