CANÇÃO DE LISBOA: No tempo em que os portugueses faziam filmes com graça, movimento e audiências, retratou-se a academia estudantil num musical brilhante que não me canso de rever. Todos nós conhecemos aquele tipo de estudante, trapaceiro, trapalhão, sempre a enganar a família e meio mundo, definitivamente envolvido numa boémia alegre e irresponsável deixando o curso ficar para trás. Aquele que pede aos colegas para o deixarem ir no carro da Queima e assim agitar as fitas aos pobres pais enganados e demais público.
O Vasco Leitão, o célebre Vasquinho da Anatomia era tudo isso. Ele não queria aprender, não lhe interessavam os conhecimentos: queria unicamente sacar o pastel às velhas tias ricas ("pela ciência eu agradeço, do que eu preciso é das notas") e as pobres, ludibriadas, cediam ("o teu saber não tem preço, podes contar com as velhotas"). Queria a massa mas queria também ser "doutor" ("chame-me doutor, homem, mais alto", diz ele ao pobre empregado do zoológico, também embarrilado no embuste, quando decide ir ver a macacada toda a 20 macacos cada um...).
Ser "doutor" sem esforço é o sonho de todo o vigarista simplório, de todo o trapaceirito. E alguns convencem-se mesmo de que são doutores. Quando o personagem, bêbedo e trôpego, se arroga do dever de acabar com as chagas sociais (no caso, referia-se ao fado) e puxa os seus galões de doutor em medicina para armar das mais divertidas zaragatas do cinema português (não obstante andar mais sem se ralar, a vadiar pelos arraiais, faltando às aulas sete dias por semana), isso outra coisa não é do que imaginar-se doutor não sendo.
Como é relativamente comum nestes pequenos intrujões, são logo rodeados de outros seus iguais, prontos a comer da mesma suja manjedoura. O sapateiro e o alfaiate são geniais no seu papel ("ou há moralidade ou comem todos") e acabam mesmo enamorados das tias (hoje seriam administradores numa qualquer empresa pública).
Este tipo de pessoas acaba por ter problemas psicológicos, destacando-se a arrogância e pesporrência, e é costume armarem-se em autoritários. Deliciosa aquela cena em que o personagem, despejado, no meio da rua com os seus tarecos, incha toda a sua sobranceria sobre o rapazito do talho ("os fornecedores são atendidos pela porta das traseiras!"). É simplesmente fabuloso como o aldrabãozito, mesmo no meio das consequências da enorme desgraça que foi a gestão da sua vida estudantil, descarrega torpemente e com altivez a sua fúria sobre o que considera mais fraco. O episódio em que ele chama palerma ao próprio tipo a quem ele queria roubar o chapéu tem plena actualidade.
Maravilhosa também a cena em que descarrega uma bofetada no miúdo que o descobre acossado e escondido na alfaiataria, disfarçado de boneco. Boneco que acaba por levar merecidamente na cara com a massa dos bolos, vindo logo lamentar-se lacrimejante e revoltado para o resto das meninas, como se fosse sempre vítima de injustiças.
No fundo, estas pessoas acabam por ser sempre umas desgraçadas, mesmo que no final venham a apoderar-se de bons lugares (fadista no Retiro do Alexandrino, por exemplo). E nem fariam muito mal se enganassem apenas as pobres tias ricas. O problema é quando as pobres tias somos todos nós.
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